quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A UGT e os tiros ao lado

Do ponto de vista de um tipo com menos de 30 anos, que nunca se sentiu elegível para a sindicalização e que observa a implosão lenta do movimento sindical global com profunda preocupação (porque é mesmo importante, para não falar da experiência sindical portuguesa), as palavras de João Proença lembram isto: as relações sociais que estão a ser destruídas, as redes de solidariedade que demoraram décadas a estruturar-se e parecem desvanecer-se em poucos meses ou anos, não voltarão a surgir tão cedo. O exemplo da América Latina está ao dispor de todos. Curar estas feridas demorará décadas, décadas que não temos e que estão irremediavelmente perdidas. Ao assinar um acordo que não resolverá coisa alguma - só servirá para acalmar temporariamente a sanha persecutória das troikas externas e internas -, Proença e a UGT reconheceram que o golpe de Estado constitucional é uma imanência. O estado de excepção está aí e tem a cara do Álvaro. Talvez saiba a pastel de nata. Seria um paliativo.

E será que resulta? Pedro Santos Guerreiro diz que os empresários portugueses deixaram de ter desculpas: nem em sonhos molhados vislumbraram aquilo que lhes foi dado. 

Digo eu, que conheço alguma coisa das PME portuguesas (e será nesse ambiente organizacional que a putativa "revolução" (a máquina mediática já nem disfarça a sua podridão) ocorrerá): não, não resulta. Claro que os seus proponentes já o sabem: o objectivo do acordo não é aumentar produtividades ou eficiências. É desequilibrar uma balança que já não existe e continuar a combater um espantalho qualquer, inventado nas escolas de gestão e nos think-tanks como a SEDES ou a FFMS. Estou mais ou menos convicto de que estes ideólogos também não sabem que espantalho é; sabem apenas que é preciso diminuir o peso do "factor trabalho" e melhorar os "recursos humanos". Que estas expressões escondam as biografias de milhões de pessoas, com famílias, vidas para viver, filhos para criar, sonhos para realizar, é coisa que pouco importa. Como disse a vigária Vaz, o lucro é que é bom. O resto? Atraso civilizacional.

Desequilibrar as relações laborais a favor dos empregadores é uma panaceia: o poder já está nas suas mãos há muito tempo, a proliferação de contratos precários evidencia-o, a transferência ascendente de riqueza comprova-o (para não falar da transferência descendente de risco) e a imposição de um cunho brutalmente regressivo ao sistema fiscal é um dos seus mecanismos. Além disso, está por explicar como é que precarizar a situação dos trabalhadores, que já é suficientemente precária e incerta, poderá ajudar um sector exportador de baixa relevância para a economia portuguesa:


e, ainda por cima, com um perfil de especialização cujo valor acrescentado é muito baixo:




 Num mundo onde existe um país chamado China. E outro chamado Bangladesh. E outro chamado Vietname. É isto que se pretende? Criar maquiladoras na zona euro?

A não ser que se defenda a manutenção de um perfil exportador baseado em qualificações esparsas e baixo valor acrescentado, o que explica a insistência nas agências de apoio à emigração. Além de que, se um conjunto de abêberas quer perpetuar-se (e às suas ideias) no poder, nada melhor que dar o aval à emigração dos eleitores com menor probabilidade de engolir patranhas durante muito tempo. Não votas em nós? Põe-te a mexer.

E tudo isto, todo este sofrimento - que ele existirá, não será pouco e é bom que nos preparemos para documentá-lo na sua dimensão total, para que as gentes do Terreiro do Paço não possam escudar-se atrás dos vidros fumados e das altas cilindradas - para nada. As PME não são improdutivas por ser difícil despedir gente. As PME são improdutivas porque a cultura organizacional portuguesa é predominantemente patriarcal, sexista, racista, anti-intelectual, avessa ao risco e dominada pela porosidade das relações interpessoais. Dito de outra forma, há preconceitos estúpidos que dominam a gestão das PME, entidades organizacionais que têm muito a ganhar com a gestão participada pelos trabalhadores, com a adopção de uma política de diversidade que as torna mais resilientes e abertas à mudança (escuso-me de usar o vocabulário burro da "inovação", deixo-o para a AICEP e para a COSEC) e com a implementação de uma cultura de aprendizagem que torne a organização capaz de suportar choques adversos.



Nada disto pode existir quando uma parte relevante dos empresários com poder decisório nas PME despreza a necessidade de falar mais que uma língua e de uma expressão correcta na língua nativa, de perceber que as lógicas sexistas e racistas são péssimos modelo de gestão, de compreender contextos culturais num mundo globalizado e, também importante, de perceber isto: uma cultura de solidariedade organizacional centrada numa compreensão real da divisão do trabalho, entendendo as trabalhadoras e trabalhadores como seres humanos integrados em contextos sociais brutalmente adversos, tende a aumentar a resiliência de uma organização. E uma organização resiliente é mais produtiva e eficiente.

É evidente que nada disto passou pela cabeça dos idiotas que inventaram um acordo tripartido onde o Memorando de Entendimento com a Troika é mais citado que a Constituição da República. E é evidente que esses idiotas acusarão sempre a CGTP - que também não concordará com grande coisa do que escrevi aqui - de não querer ajudar, colaborar, fazer. Se estivesse na posição da CGTP, teria feito o mesmo. E começaria a contar os dias até à próxima greve, aos próximos piquetes e à próxima forma de luta. Já não vamos lá de outra forma. São alterações irreversíveis de consequências lentas e imprevisíveis. Deixámos que elas acontecessem. Talvez esteja na altura de reflectirmos sobre a melhor forma de mitigá-las e sabotá-las, antes de pensarmos em combatê-las. É que esta derrota não é como as outras. Leiam o texto do acordo, aquele que Passos Coelho considerou histórico, e perceberão porquê.

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