segunda-feira, 2 de julho de 2012

Prioridades colectivas

Enfermeiros contratados a quatro euros por hora. "(...) no final do mês corresponde a cerca de 555 euros brutos e a 250 a 300 euros após os descontos, para 140 horas mensais de trabalho."
Médicos contratados a prazo. Professores com salários e situações profissionais miseráveis. 


Entretanto, as actividades do sector financeiro e segurador são remuneradas com valores que triplicam as remunerações na saúde e na educação. Em vez das diatribes costumeiras sobre a financeirização, das quais começo a fartar-me, por não explicarem tudo e apresentarem os mundos sociais como entidades inertes e sobredeterminadas, fico-me pelas perguntas.


Que revelará isto sobre nós, enquanto comunidade? Quando prezamos mais o papel social de um corretor ou de um administrador não-executivo que uma enfermeira ou um professor, que país, comunidade, sociedade, estamos a deixar a quem vier depois de nós? Sim, precária, insegura, etc.. Mas há aqui algo de mais sinistro. Quando se valoriza mais quem "gera valor" monetarizável, afirmando a primazia da teologia do dinheiro e o preço como nec plus ultra da vida social, não faltará muito para nos constituirmos enquanto sociedade de mercado.


E porquê? Para quê? Sei as respostas da cartilha, mas seria interessante debater isto com maior largura de banda. Pessoalmente, nem sequer sei o que é, na esfera civil portuguesa, uma sociedade bem-sucedida. Talvez seja porque já não somos capazes de imaginá-la; talvez seja porque temos, enquanto intelectuais orgânicos, gente como António Barreto ou Medina Carreira. Mais uma vez, respostas demasiado fáceis e desenrascadas.


Quando se desvaloriza a dignidade da medicina, da enfermagem e da educação, afirmando que o El Dorado está na Deloitte e na KPMG, ou num qualquer banco - de preferência gerindo private equity e prevenção fiscal com recurso às Ilhas Caimão -, isso não resulta apenas da exploração da classe trabalhadora e do domínio dos meios de produção por parte da classe capitalista. É uma dinâmica longa, não exclusivamente portuguesa, e hegemónica, cuja manutenção também é da nossa responsabilidade colectiva.


Não bastam respostas como "alienação" ou "justificação sistémica". É preciso perguntar por que razão se considera apropriada a destruição dos modos de vida que sustentam estas profissões, em nome do predicado da eficiência, e por que razão se assume como apropriado que, a prazo, os cursos de economia neoclássica, gestão e os MBA tendam a ter cada vez mais alunos matriculados com a certeza de que o mais importante é ganhar muito dinheiro. Talvez seja importante perguntar, e não apenas à "classe política" (uma criação pós-moderna), o que se entende por vida excelente e sociedade bem-sucedida. Perguntas aburguesadas? Não me parece. Todos os seres humanos têm uma noção daquilo que é uma vida bem vivida e de justiça social, seja qual for a sua posição no esquema hierárquico das sociedades contemporâneos. E, já agora, o que é isso de "justiça", o que significa e, mais importante, como é vivida no quotidiano. Não é preciso um doutoramento para dizermos o que é, na nossa opinião, uma vida excelente, bem vivida e realizada; bastam exemplos, e podemos partir daí. Tal como não é preciso um doutoramento para saber o que é uma sociedade bem-sucedida, para sabermos quais são as profissões que devem ser respeitadas e bem remuneradas, para sabermos se queremos que a mortalidade infantil desça e que a literacia suba. 


Se o processo colectivo de tomada de decisões não se ajusta às prioridades colectivas, talvez esteja na altura de reavaliar o processo e tentar causar uma ruptura. Contudo, uma pergunta ligeiramente mais cínica leva-me a questionar também prioridades e os seus efeitos na interacção entre seres humanos na nossa sociedade. Talvez as prioridades, estas prioridades que nos tornam colectivamente impermeáveis à precarização da vida de quem cuida de nós e dos membros das nossas redes sociais, também sejam importantes.

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