quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Rompuy, o empalador da democracia

Diz-se, por aí, que sexta-feira é o dia da verdade para a União Económica e Monetária. Pode ser. Pode não ser. Na realidade, as decisões relevantes já estão tomadas. No entanto, vão surgindo dados que nos ajudam a posicionar actores e clarificar perspectivas. O anúncio da Standard and Poors, por exemplo, que é mais um exemplo do carácter destas agências e das possibilidades e limites da auto-regulação, essa panaceia neoliberal que se transformou em fúria autofágica. Ou o relatório de Herman van Rompuy, esse burocrata apagado que emergiu, nos últimos tempos, como estrela do firmamento europeu. É um dos proponentes da pax brusselica. Não se trata de um exagero.

Vejamos. Cortesia do FT, temos acesso ao relatório produzido por esta figurinha suspeita, apagada e de ar patético, a pedido da Comissão e do Eurogrupo. É um tesouro tenebroso. E um mapa da mundividência eurocrata. A nossa imprensa focou os pontos sensacionais: euro-obrigações e automatização da austeridade. Esqueceu-se de reparar no tom e nos detalhes. Sabemos que algo está a passar-se em Bruxelas quando "intrusivo" é o adjectivo mais utilizado num relatório, ainda que confidencial. E não pode ser nada de bom. Mesmo que tenha pouco de novo.

Algumas citações seleccionadas (ênfase meu):
"(...) euro area Member States have taken on additional commitments within the framework of the Euro Plus Pact in four areas that are key for convergence: competitiveness; employment; sustainability of public finances; financial stability. These new instruments must now be implemented forcefully."
Para quem acompanha a política comunitária (curiosa designação para um bloco cada vez mais bipolar), a ideia de que os instrumentos acordados no âmbito do Pacto Euro Plus devem ser "vigorosamente implementado" só pode emergir da cabeça de alguém com um distúrbio.
"To restore market confidence in the euro area and to ensure the political sustainability of solidarity mechanisms, it is crucial to enhance the credibility of our budgetary rules (deficit and debt levels) and to ensure full compliance. This is likely to require a change in primary law."
Para facilitar a compreensão: a confiança dos "mercados" deve ser restaurada através da transformação coerciva dos ordenamentos jurídicos nacionais. Já não estamos a falar dos mecanismos de transposição, acordados pelos Estados-Membros e cuja implementação, podendo ser discutida, é liderada pelos parlamentos nacionais. Aqui, diz-se à realidade dos ciclos económicos "vai á fava" e proíbem-se as recessões. Ou melhor, ata-se a única mão que os governos tinham para estabilizar as economias e deixa-se um dedinho livre para fazer cócegas à banca.
"A resolute convergence towards balanced budgets from current positions should be envisaged for euro area Member States in line with a calendar established with the Commission. In addition, the Protocol would also include the obligation for euro area Member States to include such a rule in their national legal systems, preferably at constitutional or equivalent level. The Court of Justice would have jurisdiction to control the transposition of this rule at national level."
As constituições democráticas, em países como Portugal, Espanha e Grécia, são conquistas civilizacionais. A sugestão de que um dos documentos fundadores da comunidade política e cristalizadores da ordem democrática pode ser alterado para acomodar necessidades anti-democráticas - porque aquilo que está em causa é o direito dos investidores à remuneração do capital - é repelente. Será uma das vitórias da classe capitalista portuguesa, esse mar de competência, empreendedorismo e inovação. E um dos gáudios da classe reaccionária, que precisa de tomar um anti-histamínico quando fala do Preâmbulo à CRP. Por mim, imitava-se a Noruega, cujo feriado nacional é o Dia da Constituição. Só para ver a cara do sujeito que ocupa Belém. E para celebrar algo que ainda me faz prezar a minha identidade nacional.
"This would allow for a higher degree of precision of the measures to be adopted by the Member States, in close partnership with the Commission, which could review and endorse the programme put forward by the Member State. The overall objectives set out in a Commission or Council act could be binding as to the results to be achieved."
E, como cereja no topo do bolo, venha a governação proto-colonial. A imposição de uma ordem moral autofágica já cá andava. Até temos a quinta coluna. Basta ver o que escrevem para-intelectuais orgânicos como Vítor Bento, Vasco Pulido Valente ou os moscardos fresquinhos que se alimentam das suas carcaças e procuram um lugar ao sol. "Quem paga manda", dizem. "Não há alternativas", repetem. "É preciso pagar as dívidas, só gente desonrada não o faz", peroram. É evidente que não acreditam nas palavras que vomitam. Se acreditassem no colapso, já tinham desandado. Talvez para perto aqui de Rompuy, o empalador da democracia.

Dito isto, é claro que o Tribunal Constitucional alemão, conhecido por ainda ter uma espinha dorsal, não aceitará coerções deste género. E a vontade, já emanada de Berlim, de vincular os 27 a um novo tratado esbarrará no nacional-banalismo Tory. Eleitorados são eleitorados.

Contudo, se este documento indica algo, é a de que o tumor neoliberal está a criar metástases. E a solução, para esta trupe circense, é injectar plutónio no Estado social e na democracia. Não é para curar. É pelo gozo.




Nenhum comentário:

Postar um comentário