Fomos um Abril de gente.
E não teria talvez colocado a questão não fora ter-me
calhado a mim, entre muitos outros, o papel de manifestante apanhado num
directo televisivo. Às tantas, perguntam-me algo do género: estarmos ali a manifestar-nos
mudou alguma coisa? Não me lembro do que terei dito no momento e interessa pouco.
Apesar de tudo penso que vale a pena regressar à pergunta por outros caminhos.
Em primeiro lugar, pelo programa implícito de resignação que
contém: nada muda quando se manifestam, se depois cada um volta para a sua
vidinha mais vale nem sequer sair de casa. A troika continua a troikar, Passos
Coelho e Paulo Portas continuam a transferir dinheiro dos trabalhadores para os
grandes grupos económicos, a crise continuará o seu caminho, trabalhadores e
pensionistas ficarão cada vez mais pobres, as falências e os despedimentos
farão mais juntar-se-á à vida difícil de desempregado.
Nada disto mudou? Pode-se retirar a lição da impotência de
impormos mudanças desta forma ou pode-se retirar a lição lúcida da necessidade
de continuar e fazer muito mais para mudar. Não vou por aí. Porque sinto que
tudo mudou. Depois de termos sido tantas e tantos nas ruas pelo inteiro, esse
Abril de gente, o “país político” sabe que o tempo do governo se esgotou e que
se viverá o seu rápido ou lento apodrecimento.
Mudou, para além desse “país político”, que quem viveu a
manifestação teve a certeza que a tal questão e o seu programa implícito
estavam completamente deslocados do que ali se passava. Mudou que quem viveu a
manifestação teve a certeza que esse “país político” já não tinha o exclusivo
da política, que quem supostamente estava condenado a figurante estava a ser
personagem principal da política.
Um cartaz empunhado na manifestação citava Mia Couto: “há
quem tenha medo que o medo acabe.” Fazia-nos lembrar o país do medo autoritário
construído pacientemente por Salazar. Fazia-nos lembrar o novo país do medo
austeritário construído tecnocraticamente pelos epígonos da troika. Se o
primeiro desabou num Abril de gente pode ser que este novo Abril de gente tenha
começa a fazer desabar o segundo. Porque quem quer crer que pode tudo contra
quem tem pouco, quem tem medo que o medo acabe, talvez tenha sentido medo. Porque
o nosso medo pode muito bem ter encolhido até à pequenez ridícula a que nos procura
reduzir quando nos deixamos levar por ele.
Mudou que, ombro com ombro, quem viveu a manifestação se
sentiu e sentiu a sua força. Mudou que tivemos a certeza que não estamos
sozinhos/as, que quando voltarmos à Escola, à fábrica, ao centro de Emprego ou ao
centro de saúde olharemos para o lado e reconheceremos esses ombros. E se não
estamos sozinhos, se não temos medo, tudo mudou.
Tudo isto não quer dizer que quando não somos assim tantos
não vale a pena. Se acreditássemos nisso, estaríamos, ironicamente, excepção
feita à maior manifestação depois do 25 de Abril, a condenar o sentido das
manifestações como forma de fazer política e a dar uma razão perversa a quem
nos martela com a pergunta inicial.
Uma manifestação não é uma simples procissão de descontentes
que se meça pelo número de almas em penitência. Uma manifestação vale, aliás,
porque não tem divindades nem espera que ninguém traga a salvação. Uma
manifestação muda(-nos) pelas forças imanentes que agencia. Pela criatividade
multiforme que expressa nos cartazes, nas palavras e nos gestos. Pelo encontro
espontâneo com zangas ou sorrisos que são comuns. Pela participação na sua potência
colectiva. Porque uma manifestação é sempre só um começo. É uma avenida de
vozes aberta a vários futuros possíveis onde antes estava um muro de silêncios
respeitosos pela inevitabilidade do presente.
Nesse sentido, a 15 de Setembro de 2012 abrimos avenidas
quando a memória colectiva nos arrancou das gargantas o grito de que o povo
unido jamais será vencido. Esse grito mudou tudo. Foi a festa da certeza de que
continuaremos a ser um Abril de gente.
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