Costas Lapavitsas | The Guardian
Décadas de experiências amargas com crises financeiras permitiram aprender várias lições. Uma é que acordos com organizações multilaterais, sobretudo o FMI, devem ser evitados.
A dívida pública tornou-se um ponto central da actual crise económica, servindo para justificar políticas que cortam na despesa pública, pressionam a descida dos salários e o aumento do desemprego. Mas, a dívida pública também levanta questões de âmbito democrático. O que é que as pessoas que trabalham – as famílias trabalhadoras, as favoritas dos políticos britânicos – sabem sobre as suas causas e composição? A resposta provavelmente é: quase nada. Com que base é que são então forçadas a cumprir duros sacrifícios, presumivelmente, para controlar a dívida pública?
As eleições não são solução, mesmo quando um governo é eleito de forma expressiva e lhe é dada carta-branca em relação à dívida, como aconteceu com o Partido Conservador no Reino Unido. As plataformas eleitorais pouco mais oferecem do que argumentos gerais, por vezes ideológicos, sobre as implicações da dívida. A realidade é que a dívida pública é de uma natureza complexa, que continua a ser, na sua maioria, de contornos obscuros para os eleitores.
Outras questões do foro democrático prendem-se com as repercussões sociais da dívida pública. Os detentores de títulos públicos reivindicam parte do produto anual de um país, colectado pelo Estado através de impostos. De facto, a dívida pública actua como um mecanismo de transferência de receitas e riqueza entre classes sociais e nações. Parece por isso fundamental que aqueles que são chamados a suportar o esforço do serviço da dívida tenham uma voz activa na sua gestão. A dívida pública é demasiado importante para ser deixada nas mãos de tecnocratas não eleitos ou mesmo de políticos que visivelmente ignoram a sua natureza.
Mas será que existe alguma maneira de pôr em prática o direito democrático ao conhecimento e participação activa na forma de lidar com a dívida pública? Uma resposta pode ser extraída da experiência recente dos países em desenvolvimento.
A actual crise é a terceira maior reviravolta financeira a atingir a economia mundial desde o início da liberalização financeira dos anos 70. A primeira, nos anos 80, devastou a América Latina e o Bloco de Leste. A segunda, nos anos 90, atingiu os «tigres» asiáticos, mas também a Rússia, a Argentina e a Turquia. O desastre que começou em 2007, por outro lado, afectou o núcleo do sistema económico e financeiro global, principalmente a UE, os EUA e o Reino Unido.
As três crises estão associadas àquilo a que chamamos «financeirização do capitalismo», e exibem, por isso, padrões comuns. Os países atingidos passaram geralmente um periodo de grande crescimento do crédito doméstico, mas também dos pedidos de empréstimo ao estrangeiro. O crédito, interno e externo, foi frequentemente direccionado para a especulação imobiliária, transacções financeiras e consumo, em vez da produção. Quando a inevitável crise rebentou, os devedores ficaram com largas dívidas, internas e externas, privadas e públicas. Vieram as organizações multilaterais, impondo austeridade, protegendo os interesses dos credores e transferindo os custos da dívida para a sociedade em geral. O resultado foram anos de decréscimo nas receitas e muito desemprego.
Décadas de experiências amargas permitiram aprender várias lições, três das quais merecem ser mencionadas. Em primeiro lugar, acordos com organizações multilaterais, sobretudo o Fundo Monetário Internacional (FMI), devem ser evitados. Políticas de estabilização levam à estagnação, e para um crescimento sustentável é melhor manter o FMI à distância.
Em segundo lugar, o mecanismo internacional para lidar com a dívida favorece os credores, tipicamente os grandes bancos e outros detentores de títulos. Um alívio eficaz da dívida requer a intervenção soberana dos devedores, de forma a obter uma anulação substancial. Para além do mais, requer a cooperação internacional entre devedores.
Em terceiro lugar, a protecção dos interesses de quem pede emprestado funciona melhor caso uma boa parte das pessoas esteja envolvida, numa base democrática. Uma inovação importante tem sido a formação de comissões independentes de auditoria – geralmente a partir de movimentos populares – que exigem acesso livre à informação. Uma comissão de auditoria poderia examinar a dívida pública relativamente à sua legalidade, legitimidade, e sustentabilidade social, e verificar se é odiosa, promovendo assim a base para a sua anulação.
Escusado será dizer que a conjuntura social e política é diferente nos países desenvolvidos em comparação com os países em desenvolvimento. Mas o direito democrático de examinar a dívida pública de uma forma independente, com o objectivo de advogar políticas radicais e consequentes para a sua gestão, incluindo a anulação, é o mesmo. Há sinais de que esta lição dos países em desenvolvimento é cada vez mais apreciada na Europa, começando pela Grécia, mas também na Irlanda, em Portugal, França e noutros países. Esperemos que as pessoas trabalhadoras nos países desenvolvidos encontrem a força para lançar a arma democrática das comissões de auditoria no combate à dívida pública.
Tradução de Francisco Venes
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