terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Empecilhos de Palmo e Meio
Diz o DN que as creches estão dispostas a abrir mais horas porque «admitem adaptar-se às necessidades dos pais que tenham de trabalhar aos sábados.» Deixemo-nos de tretas: se já há quem trabalhe aos sábados, domingos, à noite ou de madrugada, é porque já há pais e mães que têm de trabalhar aos sábados. Para quem, é certo, isto é uma boa notícia. Mas porque não aos domingos, all night long, nos feriados, 365 dias por ano, e incluindo, pelo menos, as escolas primárias?
Para começar, porque as creches, jardins infantis e escolas não são depósitos a abarrotar de empecilhos à produtividade — são a concretização efectiva do direito à educação e o espaço onde decorre grande parte da socialização das crianças. Pensá-los de acordo com a exigências do mercado laboral não é ser «realista», nem pensar nas necessidades dos pais — é transformá-los em «razão atendível» para que a educação seja uma mera gestão de danos e o elemento «família» desapareça do processo de socialização. Os putos não são a mão-de-obra barata do futuro, também têm direito a um presente — um presente em que não sejam geridos em vez de acompanhados, em que não se sintam parte de uma engrenagem em que tê-los é precisamente o que mais nos obriga a não poder estar com eles. Que raio de futuro é que se constrói assim, não sei — mas sei que nesta lógica de rebentar com os tempos passados fora da escola há muito mais do que pais e mães cansados a respirar de alívio.
Para começar, há mães e pais (e avós, tios, primas e restantes significant others) mais cansados e com menos tempo para os filhos — quem está com eles quando não nos deixam: professoras, educadores, auxiliares. Sejam os mesmos de hoje a trabalhar o dobro e a ganhar o mesmo, gente contratada com vínculos miseráveis, ou obrigada a trabalhar porque recebe subsídio de desemprego. Porque não é, certamente, de criação de emprego que estamos a falar quando se criam mecanismos para garantir que não há entraves a obrigar-nos a trabalhar mais.
Resta saber (e não é difícil prever) quem vai pagar esta benesse filantrópica — a mais horas de prestação de serviços costuma corresponder um aumento de preço, e a maioria dos miúdos não tem lugar nas creches públicas. Vamos trabalhar mais para poder pagar mais pelo que nos faz poder trabalhar mais. Quem é que se lixa? Nós. Os putos. Quem toma conta deles. Ou seja — os putos.
Sim, vivemos acima das nossas possibilidades — parimos, por exemplo. É tão bonito falar tanto nas criancinhas e esquecer que lhes estamos a ensinar que são, basicamente, um sacrifício.
(Foto de Paulete Matos)
Esvaziar o mundo moral para reinar
Recordo aquilo que me foi dito, há coisa de quatro anos, nos corredores de uma instituição benquista:
"Para mim, a democracia é um bem em si mesmo". Disse-mo alguém no decurso de uma conversa acerca de Chávez, negando o epíteto "democracia" à Venezuela neobolivariana. A pretexto do incumprimento de uma visão minimalista da democracia liberal. O rule of law. Eleições livres e competitivas. Liberdade de expressão e associação. Respeito pela propriedade privada e um voto por cidadã ou cidadão com a idade mínima estabelecida por lei. Sistemas de verificação e contrabalanço dos poderes constitucionalizados. A Venezuela não cumpria (não cumpre) todos estes requisitos.
Se cumprisse, seria uma democracia representativa liberal. Isto é, se não estou a distorcer os predicados do credo liberal; fazendo-o, não o faço propositadamente.
Se o soubesse fazer, na altura, poderia ter criticado esta visão pobre de uma democracia entendida como bem supremo; poderia ter discutido o papel da deliberação e da participação cidadã; a necessidade de garantir direitos substantivos que reduzam desigualdades (de classe, género e etnicidade) - grãos de areia no funcionamento das democracias reais que se tornam, rapidamente, rochas impenetráveis -, mas não nos paraísos pluralistas de quem considera que eleições nominalmente livres e competitivas darão sempre lugar a competição entre partidos suportados por reivindicações identificáveis/distinguíveis; a necessidade de potenciar o funcionamento de uma sociedade plenamente capaz de dar substância, carne, ao esqueleto minimalista. Poderia ter debatido o significado de uma democracia procedimental e ritualista "como bem em si mesmo", ou de uma República em que quase ninguém é capaz de articular um significado plausível para "bem público" ou "interesse público". Poderia ter mostrado que uma democracia representativa só pode cumprir as suas promessas se transcender a sua dimensão minimalista e se se concentrar no facto de que, tal como uma economia, um sistema político está imbricado na sociedade onde evolui. Em suma, teria feito uma critica maximalista à banalidade procedimental, que, no limite, equipara o conteúdo moral da esfera pública à letra da lei. Que é o cerne de tudo isto: a redução do idioma moral da sociedade portuguesa aos artigos das leis.
Pegando num belíssimo artigo de Alan Finlayson, a respeito do significado filosófico do UK Uncut, este não é um problema menor.
Vale a pena atentar nisto, acho eu. Se não podemos criticar uma acção como imoral porque ela é definida como legal, o conteúdo moral da sociedade portuguesa é, em última análise, emanado da Constituição da República. E a Constituição da República é, hoje por hoje, uma nota de rodapé do Memorando de Entendimento acordado com a chamada troika. Esta é a base argumentativa de quem desqualifica a crítica à Jerónimo Martins como "algaraviada" e "gritaria" sem justificação. Se não viola a lei, não é imoral. A sociedade civil acaba de implodir. O debate público, que torna a democracia o tal "bem em si mesmo", acaba de desvanecer-se, esmagado por um passe de prestidigitação. A produção da hegemonia torna-se mais ou menos redundante e eterniza-se.
A não ser que os movimentos sociais decidam converter-se em verdadeiras plataformas de debate acerca da democracia que queremos, dizer "não é esta", "queremos a verdadeira" ou "assembleia popular" não chega. Já não chega. Do que precisamos é de perceber o ponto inicial. Porque já há muitos revolucionários por aí. Aquilo de que precisamos, e se o quisermos, é de perceber, citando esse grande filósofo, que raio de democracia é esta e qual a que queremos. Se será representativa e minimalista, como aquela que nos obrigam a tragar, ou deliberativa e maximalista, como alguns sectores mobilizados pretendem, não sei. Sei é que não podemos perder mais tempo apenas concentradas e concentrados em austeridade, economia, finanças, dívida, capital, capital, capital. As democracias são feitas de gente e dúvidas. Gente que tem dúvidas acerca do que pode fazer para atingir um fim, o da felicidade colectiva, sem perverter princípios fundadores. Sem saber mais ou menos o que queremos, ou, por outra, sem sabermos que precisamos de discutir seriamente o que queremos, em vez de debitar fúria contra o capitalismo, contra os políticos corruptos e contra tudo o que respira. Mesmo que não se chegue a um programa esculpido em mármore, é preciso discuti-lo; deixar a lei como guarda da nossa vida moral é o toque a finados da utopia. Eu, como mero observador do momento histórico que vivemos, tento percebê-lo: ocupar tudo, mas ocupar tudo em prol de quê? Para mudar a lei eleitoral? Pendurar os políticos de cabeça para baixo? Acabar com os paraísos fiscais? Fazer a Revolução? Venha ela. O que eu quero é saber o que vamos fazer com o mundo depois disso. E não será a deixar que se confunda a lei com a moral.
"Para mim, a democracia é um bem em si mesmo". Disse-mo alguém no decurso de uma conversa acerca de Chávez, negando o epíteto "democracia" à Venezuela neobolivariana. A pretexto do incumprimento de uma visão minimalista da democracia liberal. O rule of law. Eleições livres e competitivas. Liberdade de expressão e associação. Respeito pela propriedade privada e um voto por cidadã ou cidadão com a idade mínima estabelecida por lei. Sistemas de verificação e contrabalanço dos poderes constitucionalizados. A Venezuela não cumpria (não cumpre) todos estes requisitos.
Se cumprisse, seria uma democracia representativa liberal. Isto é, se não estou a distorcer os predicados do credo liberal; fazendo-o, não o faço propositadamente.
Se o soubesse fazer, na altura, poderia ter criticado esta visão pobre de uma democracia entendida como bem supremo; poderia ter discutido o papel da deliberação e da participação cidadã; a necessidade de garantir direitos substantivos que reduzam desigualdades (de classe, género e etnicidade) - grãos de areia no funcionamento das democracias reais que se tornam, rapidamente, rochas impenetráveis -, mas não nos paraísos pluralistas de quem considera que eleições nominalmente livres e competitivas darão sempre lugar a competição entre partidos suportados por reivindicações identificáveis/distinguíveis; a necessidade de potenciar o funcionamento de uma sociedade plenamente capaz de dar substância, carne, ao esqueleto minimalista. Poderia ter debatido o significado de uma democracia procedimental e ritualista "como bem em si mesmo", ou de uma República em que quase ninguém é capaz de articular um significado plausível para "bem público" ou "interesse público". Poderia ter mostrado que uma democracia representativa só pode cumprir as suas promessas se transcender a sua dimensão minimalista e se se concentrar no facto de que, tal como uma economia, um sistema político está imbricado na sociedade onde evolui. Em suma, teria feito uma critica maximalista à banalidade procedimental, que, no limite, equipara o conteúdo moral da esfera pública à letra da lei. Que é o cerne de tudo isto: a redução do idioma moral da sociedade portuguesa aos artigos das leis.
Pegando num belíssimo artigo de Alan Finlayson, a respeito do significado filosófico do UK Uncut, este não é um problema menor.
"Consider for a moment the real implications of the proposition that no act can justly be criticized unless it is against the law. The implication is that law is a full and total expression of moral values. Only totalitarians think that. Everybody else recognises that, while certainly informed by morality, the function of the law is to provide a framework within which civil society can function and can debate the rights and wrongs of actions."Atentando em todas as justificações de Alexandre Soares dos Santos - e, especialmente, dos intelectuais orgânicos que povoam a chusma de panfletos saídos da caneta de um Orwell relativamente bem-disposto -, surge uma regularidade: nenhuma acção é imoral se se mantiver do lado "certo" da lei. Nada é passível de crítica, muito menos uma operação que obedece à racionalidade utilitária do mercado competitivo, se não viola quaisquer regras inscritas no granito. Ou seja, nada é imoral se não é ilegal. Este passo de dança é um prego no caixão de qualquer esfera pública; num exemplar tão diáfano e vetusto como o português, um mero sopro daria lugar a um toque a finados. A resposta, com argumentos de carácter técnico e indignado, não surtem o efeito apropriado: esta não é uma questão de legalidade, porque a legalidade deixou de ser um fulcro da política. Aquilo que está em causa é o estertor do discurso moral e das suas incertezas.
Vale a pena atentar nisto, acho eu. Se não podemos criticar uma acção como imoral porque ela é definida como legal, o conteúdo moral da sociedade portuguesa é, em última análise, emanado da Constituição da República. E a Constituição da República é, hoje por hoje, uma nota de rodapé do Memorando de Entendimento acordado com a chamada troika. Esta é a base argumentativa de quem desqualifica a crítica à Jerónimo Martins como "algaraviada" e "gritaria" sem justificação. Se não viola a lei, não é imoral. A sociedade civil acaba de implodir. O debate público, que torna a democracia o tal "bem em si mesmo", acaba de desvanecer-se, esmagado por um passe de prestidigitação. A produção da hegemonia torna-se mais ou menos redundante e eterniza-se.
A não ser que os movimentos sociais decidam converter-se em verdadeiras plataformas de debate acerca da democracia que queremos, dizer "não é esta", "queremos a verdadeira" ou "assembleia popular" não chega. Já não chega. Do que precisamos é de perceber o ponto inicial. Porque já há muitos revolucionários por aí. Aquilo de que precisamos, e se o quisermos, é de perceber, citando esse grande filósofo, que raio de democracia é esta e qual a que queremos. Se será representativa e minimalista, como aquela que nos obrigam a tragar, ou deliberativa e maximalista, como alguns sectores mobilizados pretendem, não sei. Sei é que não podemos perder mais tempo apenas concentradas e concentrados em austeridade, economia, finanças, dívida, capital, capital, capital. As democracias são feitas de gente e dúvidas. Gente que tem dúvidas acerca do que pode fazer para atingir um fim, o da felicidade colectiva, sem perverter princípios fundadores. Sem saber mais ou menos o que queremos, ou, por outra, sem sabermos que precisamos de discutir seriamente o que queremos, em vez de debitar fúria contra o capitalismo, contra os políticos corruptos e contra tudo o que respira. Mesmo que não se chegue a um programa esculpido em mármore, é preciso discuti-lo; deixar a lei como guarda da nossa vida moral é o toque a finados da utopia. Eu, como mero observador do momento histórico que vivemos, tento percebê-lo: ocupar tudo, mas ocupar tudo em prol de quê? Para mudar a lei eleitoral? Pendurar os políticos de cabeça para baixo? Acabar com os paraísos fiscais? Fazer a Revolução? Venha ela. O que eu quero é saber o que vamos fazer com o mundo depois disso. E não será a deixar que se confunda a lei com a moral.
"Men use up their lives in heart-breaking political struggles, or get themselves killed in civil wars, or tortured in the secret prisons of the Gestapo, not in order to establish some central-heated, air-conditioned, strip-lighted Paradise, but because they want a world in which human beings love one another instead of swindling and murdering one another. And they want that world as a first step. Where they go from there is not so certain, and the attempt to foresee it in detail merely confuses the issue."
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
A UGT e os tiros ao lado
Do ponto de vista de um tipo com menos de 30 anos, que nunca se sentiu elegível para a sindicalização e que observa a implosão lenta do movimento sindical global com profunda preocupação (porque é mesmo importante, para não falar da experiência sindical portuguesa), as palavras de João Proença lembram isto: as relações sociais que estão a ser destruídas, as redes de solidariedade que demoraram décadas a estruturar-se e parecem desvanecer-se em poucos meses ou anos, não voltarão a surgir tão cedo. O exemplo da América Latina está ao dispor de todos. Curar estas feridas demorará décadas, décadas que não temos e que estão irremediavelmente perdidas. Ao assinar um acordo que não resolverá coisa alguma - só servirá para acalmar temporariamente a sanha persecutória das troikas externas e internas -, Proença e a UGT reconheceram que o golpe de Estado constitucional é uma imanência. O estado de excepção está aí e tem a cara do Álvaro. Talvez saiba a pastel de nata. Seria um paliativo.
e, ainda por cima, com um perfil de especialização cujo valor acrescentado é muito baixo:
Num mundo onde existe um país chamado China. E outro chamado Bangladesh. E outro chamado Vietname. É isto que se pretende? Criar maquiladoras na zona euro?
E será que resulta? Pedro Santos Guerreiro diz que os empresários portugueses deixaram de ter desculpas: nem em sonhos molhados vislumbraram aquilo que lhes foi dado.
Digo eu, que conheço alguma coisa das PME portuguesas (e será nesse ambiente organizacional que a putativa "revolução" (a máquina mediática já nem disfarça a sua podridão) ocorrerá): não, não resulta. Claro que os seus proponentes já o sabem: o objectivo do acordo não é aumentar produtividades ou eficiências. É desequilibrar uma balança que já não existe e continuar a combater um espantalho qualquer, inventado nas escolas de gestão e nos think-tanks como a SEDES ou a FFMS. Estou mais ou menos convicto de que estes ideólogos também não sabem que espantalho é; sabem apenas que é preciso diminuir o peso do "factor trabalho" e melhorar os "recursos humanos". Que estas expressões escondam as biografias de milhões de pessoas, com famílias, vidas para viver, filhos para criar, sonhos para realizar, é coisa que pouco importa. Como disse a vigária Vaz, o lucro é que é bom. O resto? Atraso civilizacional.
Desequilibrar as relações laborais a favor dos empregadores é uma panaceia: o poder já está nas suas mãos há muito tempo, a proliferação de contratos precários evidencia-o, a transferência ascendente de riqueza comprova-o (para não falar da transferência descendente de risco) e a imposição de um cunho brutalmente regressivo ao sistema fiscal é um dos seus mecanismos. Além disso, está por explicar como é que precarizar a situação dos trabalhadores, que já é suficientemente precária e incerta, poderá ajudar um sector exportador de baixa relevância para a economia portuguesa:
Desequilibrar as relações laborais a favor dos empregadores é uma panaceia: o poder já está nas suas mãos há muito tempo, a proliferação de contratos precários evidencia-o, a transferência ascendente de riqueza comprova-o (para não falar da transferência descendente de risco) e a imposição de um cunho brutalmente regressivo ao sistema fiscal é um dos seus mecanismos. Além disso, está por explicar como é que precarizar a situação dos trabalhadores, que já é suficientemente precária e incerta, poderá ajudar um sector exportador de baixa relevância para a economia portuguesa:
e, ainda por cima, com um perfil de especialização cujo valor acrescentado é muito baixo:
Num mundo onde existe um país chamado China. E outro chamado Bangladesh. E outro chamado Vietname. É isto que se pretende? Criar maquiladoras na zona euro?
A não ser que se defenda a manutenção de um perfil exportador baseado em qualificações esparsas e baixo valor acrescentado, o que explica a insistência nas agências de apoio à emigração. Além de que, se um conjunto de abêberas quer perpetuar-se (e às suas ideias) no poder, nada melhor que dar o aval à emigração dos eleitores com menor probabilidade de engolir patranhas durante muito tempo. Não votas em nós? Põe-te a mexer.
E tudo isto, todo este sofrimento - que ele existirá, não será pouco e é bom que nos preparemos para documentá-lo na sua dimensão total, para que as gentes do Terreiro do Paço não possam escudar-se atrás dos vidros fumados e das altas cilindradas - para nada. As PME não são improdutivas por ser difícil despedir gente. As PME são improdutivas porque a cultura organizacional portuguesa é predominantemente patriarcal, sexista, racista, anti-intelectual, avessa ao risco e dominada pela porosidade das relações interpessoais. Dito de outra forma, há preconceitos estúpidos que dominam a gestão das PME, entidades organizacionais que têm muito a ganhar com a gestão participada pelos trabalhadores, com a adopção de uma política de diversidade que as torna mais resilientes e abertas à mudança (escuso-me de usar o vocabulário burro da "inovação", deixo-o para a AICEP e para a COSEC) e com a implementação de uma cultura de aprendizagem que torne a organização capaz de suportar choques adversos.
Nada disto pode existir quando uma parte relevante dos empresários com poder decisório nas PME despreza a necessidade de falar mais que uma língua e de uma expressão correcta na língua nativa, de perceber que as lógicas sexistas e racistas são péssimos modelo de gestão, de compreender contextos culturais num mundo globalizado e, também importante, de perceber isto: uma cultura de solidariedade organizacional centrada numa compreensão real da divisão do trabalho, entendendo as trabalhadoras e trabalhadores como seres humanos integrados em contextos sociais brutalmente adversos, tende a aumentar a resiliência de uma organização. E uma organização resiliente é mais produtiva e eficiente.
É evidente que nada disto passou pela cabeça dos idiotas que inventaram um acordo tripartido onde o Memorando de Entendimento com a Troika é mais citado que a Constituição da República. E é evidente que esses idiotas acusarão sempre a CGTP - que também não concordará com grande coisa do que escrevi aqui - de não querer ajudar, colaborar, fazer. Se estivesse na posição da CGTP, teria feito o mesmo. E começaria a contar os dias até à próxima greve, aos próximos piquetes e à próxima forma de luta. Já não vamos lá de outra forma. São alterações irreversíveis de consequências lentas e imprevisíveis. Deixámos que elas acontecessem. Talvez esteja na altura de reflectirmos sobre a melhor forma de mitigá-las e sabotá-las, antes de pensarmos em combatê-las. É que esta derrota não é como as outras. Leiam o texto do acordo, aquele que Passos Coelho considerou histórico, e perceberão porquê.
E tudo isto, todo este sofrimento - que ele existirá, não será pouco e é bom que nos preparemos para documentá-lo na sua dimensão total, para que as gentes do Terreiro do Paço não possam escudar-se atrás dos vidros fumados e das altas cilindradas - para nada. As PME não são improdutivas por ser difícil despedir gente. As PME são improdutivas porque a cultura organizacional portuguesa é predominantemente patriarcal, sexista, racista, anti-intelectual, avessa ao risco e dominada pela porosidade das relações interpessoais. Dito de outra forma, há preconceitos estúpidos que dominam a gestão das PME, entidades organizacionais que têm muito a ganhar com a gestão participada pelos trabalhadores, com a adopção de uma política de diversidade que as torna mais resilientes e abertas à mudança (escuso-me de usar o vocabulário burro da "inovação", deixo-o para a AICEP e para a COSEC) e com a implementação de uma cultura de aprendizagem que torne a organização capaz de suportar choques adversos.
Nada disto pode existir quando uma parte relevante dos empresários com poder decisório nas PME despreza a necessidade de falar mais que uma língua e de uma expressão correcta na língua nativa, de perceber que as lógicas sexistas e racistas são péssimos modelo de gestão, de compreender contextos culturais num mundo globalizado e, também importante, de perceber isto: uma cultura de solidariedade organizacional centrada numa compreensão real da divisão do trabalho, entendendo as trabalhadoras e trabalhadores como seres humanos integrados em contextos sociais brutalmente adversos, tende a aumentar a resiliência de uma organização. E uma organização resiliente é mais produtiva e eficiente.
É evidente que nada disto passou pela cabeça dos idiotas que inventaram um acordo tripartido onde o Memorando de Entendimento com a Troika é mais citado que a Constituição da República. E é evidente que esses idiotas acusarão sempre a CGTP - que também não concordará com grande coisa do que escrevi aqui - de não querer ajudar, colaborar, fazer. Se estivesse na posição da CGTP, teria feito o mesmo. E começaria a contar os dias até à próxima greve, aos próximos piquetes e à próxima forma de luta. Já não vamos lá de outra forma. São alterações irreversíveis de consequências lentas e imprevisíveis. Deixámos que elas acontecessem. Talvez esteja na altura de reflectirmos sobre a melhor forma de mitigá-las e sabotá-las, antes de pensarmos em combatê-las. É que esta derrota não é como as outras. Leiam o texto do acordo, aquele que Passos Coelho considerou histórico, e perceberão porquê.
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
35.000 contra a Precariedade
A Iniciativa Legislativa de Cidadãos por uma Lei Contra a Precariedade será entregue na Assembleia da República na próxima 5ª feira, dia 12 de Janeiro. A entrega das mais de 35 mil assinaturas vai ter lugar em audiência com a Presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves.
Cumpre-se assim o primeiro grande objectivo desta iniciativa, depois de vários meses de mobilização em todo o país. Uma enorme adesão em nome de uma proposta concreta, que é parte integrante da indignação que tem exigido nas ruas mais democracia e alternativas, desde 12 de Março de 2011.
Esta iniciativa confronta o parlamento com uma solução concreta para enfrentar a precariedade nas suas dimensões mais frequentes: os falsos recibos verdes, a contratação a prazo para funções permanentes e o recurso abusivo ao trabalho temporário.
Esta é apenas a segunda vez em que uma lei proposta por cidadãos é discutida e votada no parlamento. Inicia-se agora a batalha cidadã pela aprovação de uma lei que efectivamente combate a precariedade. Dentro e fora do parlamento, lutaremos por esta proposta e pela sua ampla discussão na sociedade.
Mais informações aqui.
Portugal não é a Grécia, o Haiti não é aqui
Começa a ler-se a notícia e a primeira reacção, instintiva, é a de querer acreditar que se trata apenas de uma peça jornalística pouco verosímil, empolada ou distorcida, nas fronteiras da propaganda e agitação política. Deseja-se supor, numa espécie de reacção súbita de auto-defesa, que tudo não seja mais do que uma nota intencionalmente incendiária, vertida por um qualquer movimento menos confiável, que procura estabelecer generalizações a partir de casos muito pontuais ou mal explicados.
A reportagem «Gregos em desespero entregam filhos a instituições» tem contudo a chancela da insuspeita BBC e é assinada pela jornalista Chloe Hadjimatheou, a partir de Atenas. A RTP traduz o texto original na sua página da internet, mas desconheço se o mesmo deu lugar a uma peça noticiosa, num dos telejornais do dia, algures entre os 45 mil euros mensais que Eduardo Catroga vai passar a receber, as declarações alienígenas de Vítor Gaspar no Parlamento ou as conclusões do Boletim de Inverno do Banco de Portugal, que dão conta do agravamento da recessão para 2012, com uma contracção da economia que rondará, afinal, os 3,1% do PIB.
Pouco ou nada há para acrescentar à notícia. Ela é suficientemente clara e sóbria, dispensando o recurso a lamechices, para nos deixar com um nó na garganta. E, bem o sabemos, a Grécia não é o Haiti, por mais perplexos que nos sintamos perante esta sinistra Europa, num impensável início do século XXI. Mas não consigo neste momento deixar de lembrar uns cartazes que vi por diversas vezes em Frankfurt, a apelar à solidariedade dos alemães para com os países do terceiro mundo. Como não posso impedir a memória daquela constatação terrível, de um povo ainda em choque, no desfecho da Segunda Guerra Mundial: «não sabíamos». Ou, ainda, do trecho de uma outra música, igualmente conhecida, que diria hoje «espero que os alemães também amem as suas crianças».
Uma coisa tornou-se contudo mais clara, mais consciente: na imposição da criminosa receita austeritária à periferia do Sul da Europa, não há memória de um apelo, de uma exigência, de um lamento genuino ou até de medidas concretas - por parte da troika e das suas figuras de proa, de Merkel ou de Sarkosy - capazes de impedir, intransigentemente, que os sacrifícios recaíssem sobre os mais vulneráveis, de modo a tornar impossível que situações limite conhecessem a luz do dia. Apenas uma imensa e indisfarçável frieza. A mesma indisfarçável frieza de Pedro Passos Coelho e da generalidade dos membros do seu governo, em delírio por poderem desbravar os caminhos que vão para «além da troika».
(Publicado originalmente no Ladrões de Bicicletas)
A reportagem «Gregos em desespero entregam filhos a instituições» tem contudo a chancela da insuspeita BBC e é assinada pela jornalista Chloe Hadjimatheou, a partir de Atenas. A RTP traduz o texto original na sua página da internet, mas desconheço se o mesmo deu lugar a uma peça noticiosa, num dos telejornais do dia, algures entre os 45 mil euros mensais que Eduardo Catroga vai passar a receber, as declarações alienígenas de Vítor Gaspar no Parlamento ou as conclusões do Boletim de Inverno do Banco de Portugal, que dão conta do agravamento da recessão para 2012, com uma contracção da economia que rondará, afinal, os 3,1% do PIB.
Pouco ou nada há para acrescentar à notícia. Ela é suficientemente clara e sóbria, dispensando o recurso a lamechices, para nos deixar com um nó na garganta. E, bem o sabemos, a Grécia não é o Haiti, por mais perplexos que nos sintamos perante esta sinistra Europa, num impensável início do século XXI. Mas não consigo neste momento deixar de lembrar uns cartazes que vi por diversas vezes em Frankfurt, a apelar à solidariedade dos alemães para com os países do terceiro mundo. Como não posso impedir a memória daquela constatação terrível, de um povo ainda em choque, no desfecho da Segunda Guerra Mundial: «não sabíamos». Ou, ainda, do trecho de uma outra música, igualmente conhecida, que diria hoje «espero que os alemães também amem as suas crianças».
Uma coisa tornou-se contudo mais clara, mais consciente: na imposição da criminosa receita austeritária à periferia do Sul da Europa, não há memória de um apelo, de uma exigência, de um lamento genuino ou até de medidas concretas - por parte da troika e das suas figuras de proa, de Merkel ou de Sarkosy - capazes de impedir, intransigentemente, que os sacrifícios recaíssem sobre os mais vulneráveis, de modo a tornar impossível que situações limite conhecessem a luz do dia. Apenas uma imensa e indisfarçável frieza. A mesma indisfarçável frieza de Pedro Passos Coelho e da generalidade dos membros do seu governo, em delírio por poderem desbravar os caminhos que vão para «além da troika».
(Publicado originalmente no Ladrões de Bicicletas)
A austeridade é só gargantas
Portugal é um país pequenino. Na China, a operação “three gorges” deslocou 1,4 milhões para fora da sua residência. Enquanto que por cá apenas deslocou quatro pessoas de direita para um tacho dourado.
Caso para dizer que a austeridade é só gargantas...
Caso para dizer que a austeridade é só gargantas...
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
Novo livro da colecção Pingo Doce
O livro a que o João Rodrigues se refere aqui, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, estará brevemente disponível e conta com um prefácio de António Barreto.
O autor, Alexandre Soares dos Santos, foi considerado pela Forbes em Março de 2011 o segundo português mais rico, apenas antecedido por Américo Amorim, um singelo trabalhador da área da cortiça.
Consciente da situação que o país atravessa, Alexandre Soares dos Santos explica neste livro o enquadramento legal subjacente ao processo de transferência para uma sede, na Holanda (onde estão sediados vários offshores), das acções que a família detinha na Jerónimo Martins, e o modo como se solidariza, assim, com «as dificuldades que o povo está a atravessar» (como referia numa entrevista recentemente concedida a Fátima Campos Ferreira).(*)
No prefácio, António Barreto discorre uma vez mais sobre a falência do Estado social, reiterando que «há direitos que não são compatíveis com a crise» e critica a Constituição, na qual «o cidadão português tem todos os direitos e mais alguns». A Pordata comemorará o lançamento deste livro activando um daqueles «simuladores ao segundo» em que, em vez do aumento da despesa pública em saúde ou educação, surgirá o valor das perdas de receita que resultam dos expedientes de «deslocalização fiscal» a que recorrem muitos dos grandes grupos económicos nacionais.
(*) Percebe-se hoje o verdadeiro alcance de uma frase de Alexandre Soares dos Santos nessa mesma entrevista: «vamos dar corda aos sapatos».
(Publicado originalmente no Ladrões de Bicicletas)
O autor, Alexandre Soares dos Santos, foi considerado pela Forbes em Março de 2011 o segundo português mais rico, apenas antecedido por Américo Amorim, um singelo trabalhador da área da cortiça.
Consciente da situação que o país atravessa, Alexandre Soares dos Santos explica neste livro o enquadramento legal subjacente ao processo de transferência para uma sede, na Holanda (onde estão sediados vários offshores), das acções que a família detinha na Jerónimo Martins, e o modo como se solidariza, assim, com «as dificuldades que o povo está a atravessar» (como referia numa entrevista recentemente concedida a Fátima Campos Ferreira).(*)
No prefácio, António Barreto discorre uma vez mais sobre a falência do Estado social, reiterando que «há direitos que não são compatíveis com a crise» e critica a Constituição, na qual «o cidadão português tem todos os direitos e mais alguns». A Pordata comemorará o lançamento deste livro activando um daqueles «simuladores ao segundo» em que, em vez do aumento da despesa pública em saúde ou educação, surgirá o valor das perdas de receita que resultam dos expedientes de «deslocalização fiscal» a que recorrem muitos dos grandes grupos económicos nacionais.
(*) Percebe-se hoje o verdadeiro alcance de uma frase de Alexandre Soares dos Santos nessa mesma entrevista: «vamos dar corda aos sapatos».
(Publicado originalmente no Ladrões de Bicicletas)
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
É o mérito, estúpido!
O Secretário de Estado do Emprego, Pedro Silva Martins, tem um CV de invejável calibre. Sucede que, no meio de toda essa produção académica, pontifica um working paper, publicitado, aliás, na imprensa, em que testa uma hipótese trivial: as nomeações para cargos no sector empresarial do Estado tendem a aumentar antes e depois dos ciclos eleitorais.
Nada disto é novo, mas a trivialidade deste trabalho é compensada pela ilustração cabal do fenómeno da porta rolante. E pelo título que o emérito professor catedrático do Queen Mary College da Universidade de Londres, lhe deu: Compadrio ou Nepotismo , à escolha que vos convier. Se fosse mauzinho, debateria a ironia involuntária do título e do tema, mas deixemos isso para outros carnavais.
Duas citações para nos rirmos colectivamente:
Vem isto a propósito de uma notícia que dá conta da possibilidade de Paulo Rangel ser lançado para a Casa da Música, como parte do confronto épico entre esses titãs da política portuguesa, Rui Rio e Luís Filipe Meneses.
A notícia fala por si. É ler e chorar pela República.
A coisa não acaba aí. Também está lá isto:
Nada disto é novo, mas a trivialidade deste trabalho é compensada pela ilustração cabal do fenómeno da porta rolante. E pelo título que o emérito professor catedrático do Queen Mary College da Universidade de Londres, lhe deu: Compadrio ou Nepotismo , à escolha que vos convier. Se fosse mauzinho, debateria a ironia involuntária do título e do tema, mas deixemos isso para outros carnavais.
Duas citações para nos rirmos colectivamente:
"State-owned firms can carry out a number of tasks that may be less effi ciently produced by the private sector. However, it has been shown abundantly that assuming the benevolence and public-spiritedness of politicians is not always appropriate - and their management of such firms may be another important example. For instance, politicians can use those firms to give jobs to cronies, at the expense of the efficiency of the public sector, equity, and general welfare."
"The post-elections hirings spike is particularly strong if the new government is of a different political colour than its predecessor, again as predicted by the model. All findings hold whenTorna-se óbvio concluir que as fundações e institutos públicos fazem parte deste ecossistema. E, para que conste, não estou a fazer a apologia da extinção furiosa de fundações e institutos públicos: fazê-lo acarretará a emergência de entidades reguladoras que criarão novas e mais perniciosas estruturas de oportunidades para a corrupção, tráfico de influências ou pura e simples estupidez, como a do senhor que garantia, de joelhos no chão, frente a José Gomes Ferreira, que não existe cartel nenhum nos combustíveis, cruzescredovalhamossenhor.
taking the private sector as a control group and in many di fferent subsets of the main data,
including specific industries, time periods, and job levels. The latter results point towards
the pervasiveness of cronyism within public-sector firms, which are not restricted to a small number of high-level positions."
Vem isto a propósito de uma notícia que dá conta da possibilidade de Paulo Rangel ser lançado para a Casa da Música, como parte do confronto épico entre esses titãs da política portuguesa, Rui Rio e Luís Filipe Meneses.
A notícia fala por si. É ler e chorar pela República.
A coisa não acaba aí. Também está lá isto:
Certo é que, como já garantiu Nuno Azevedo, haverá uma renovação do conselho de administração, actualmente presidido por José Manuel Dias da Fonseca, e que se estenderá, ao que tudo indica, ao conselho de fundadores, presidido por Artur Santos Silva, mas cujo cargo o chairman do Banco Português de Investimento (BPI) deverá abandonar, depois de na semana passada ter sido nomeado sucessor de Rui Vilar na administração da Fundação Gulbenkian.Um parágrafo sumarento mostra que há um trabalho longo a fazer, se quisermos compreender e desvelar as estruturas de poder das elites portuguesas, revelando redes relacionais que evocam a imagem de uma estratosfera social e nos permitem compreender por que razão não vale a pena falar, a esta coorte de pretores e senadores, das desigualdades e das causas profundas do subdesenvolvimento socioeconómico de Portugal. É um mundo em que €485 permitem vidas fáceis. É um universo onde democratizar a economia é blindar monopólios e rezar no altar do liberal-paternalismo. Capitalismo para os pobres, socialismo para os ricos. Pim.
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