"Para mim, a democracia é um bem em si mesmo". Disse-mo alguém no decurso de uma conversa acerca de Chávez, negando o epíteto "democracia" à Venezuela neobolivariana. A pretexto do incumprimento de uma visão minimalista da democracia liberal. O rule of law. Eleições livres e competitivas. Liberdade de expressão e associação. Respeito pela propriedade privada e um voto por cidadã ou cidadão com a idade mínima estabelecida por lei. Sistemas de verificação e contrabalanço dos poderes constitucionalizados. A Venezuela não cumpria (não cumpre) todos estes requisitos.
Se cumprisse, seria uma democracia representativa liberal. Isto é, se não estou a distorcer os predicados do credo liberal; fazendo-o, não o faço propositadamente.
Se o soubesse fazer, na altura, poderia ter criticado esta visão pobre de uma democracia entendida como bem supremo; poderia ter discutido o papel da deliberação e da participação cidadã; a necessidade de garantir direitos substantivos que reduzam desigualdades (de classe, género e etnicidade) - grãos de areia no funcionamento das democracias reais que se tornam, rapidamente, rochas impenetráveis -, mas não nos paraísos pluralistas de quem considera que eleições nominalmente livres e competitivas darão sempre lugar a competição entre partidos suportados por reivindicações identificáveis/distinguíveis; a necessidade de potenciar o funcionamento de uma sociedade plenamente capaz de dar substância, carne, ao esqueleto minimalista. Poderia ter debatido o significado de uma democracia procedimental e ritualista "como bem em si mesmo", ou de uma República em que quase ninguém é capaz de articular um significado plausível para "bem público" ou "interesse público". Poderia ter mostrado que uma democracia representativa só pode cumprir as suas promessas se transcender a sua dimensão minimalista e se se concentrar no facto de que, tal como uma economia, um sistema político está imbricado na sociedade onde evolui. Em suma, teria feito uma critica maximalista à banalidade procedimental, que, no limite, equipara o conteúdo moral da esfera pública à letra da lei. Que é o cerne de tudo isto: a redução do idioma moral da sociedade portuguesa aos artigos das leis.
Pegando num belíssimo artigo de Alan Finlayson, a respeito do significado filosófico do UK Uncut, este não é um problema menor.
"Consider for a moment the real implications of the proposition that no act can justly be criticized unless it is against the law. The implication is that law is a full and total expression of moral values. Only totalitarians think that. Everybody else recognises that, while certainly informed by morality, the function of the law is to provide a framework within which civil society can function and can debate the rights and wrongs of actions."Atentando em todas as justificações de Alexandre Soares dos Santos - e, especialmente, dos intelectuais orgânicos que povoam a chusma de panfletos saídos da caneta de um Orwell relativamente bem-disposto -, surge uma regularidade: nenhuma acção é imoral se se mantiver do lado "certo" da lei. Nada é passível de crítica, muito menos uma operação que obedece à racionalidade utilitária do mercado competitivo, se não viola quaisquer regras inscritas no granito. Ou seja, nada é imoral se não é ilegal. Este passo de dança é um prego no caixão de qualquer esfera pública; num exemplar tão diáfano e vetusto como o português, um mero sopro daria lugar a um toque a finados. A resposta, com argumentos de carácter técnico e indignado, não surtem o efeito apropriado: esta não é uma questão de legalidade, porque a legalidade deixou de ser um fulcro da política. Aquilo que está em causa é o estertor do discurso moral e das suas incertezas.
Vale a pena atentar nisto, acho eu. Se não podemos criticar uma acção como imoral porque ela é definida como legal, o conteúdo moral da sociedade portuguesa é, em última análise, emanado da Constituição da República. E a Constituição da República é, hoje por hoje, uma nota de rodapé do Memorando de Entendimento acordado com a chamada troika. Esta é a base argumentativa de quem desqualifica a crítica à Jerónimo Martins como "algaraviada" e "gritaria" sem justificação. Se não viola a lei, não é imoral. A sociedade civil acaba de implodir. O debate público, que torna a democracia o tal "bem em si mesmo", acaba de desvanecer-se, esmagado por um passe de prestidigitação. A produção da hegemonia torna-se mais ou menos redundante e eterniza-se.
A não ser que os movimentos sociais decidam converter-se em verdadeiras plataformas de debate acerca da democracia que queremos, dizer "não é esta", "queremos a verdadeira" ou "assembleia popular" não chega. Já não chega. Do que precisamos é de perceber o ponto inicial. Porque já há muitos revolucionários por aí. Aquilo de que precisamos, e se o quisermos, é de perceber, citando esse grande filósofo, que raio de democracia é esta e qual a que queremos. Se será representativa e minimalista, como aquela que nos obrigam a tragar, ou deliberativa e maximalista, como alguns sectores mobilizados pretendem, não sei. Sei é que não podemos perder mais tempo apenas concentradas e concentrados em austeridade, economia, finanças, dívida, capital, capital, capital. As democracias são feitas de gente e dúvidas. Gente que tem dúvidas acerca do que pode fazer para atingir um fim, o da felicidade colectiva, sem perverter princípios fundadores. Sem saber mais ou menos o que queremos, ou, por outra, sem sabermos que precisamos de discutir seriamente o que queremos, em vez de debitar fúria contra o capitalismo, contra os políticos corruptos e contra tudo o que respira. Mesmo que não se chegue a um programa esculpido em mármore, é preciso discuti-lo; deixar a lei como guarda da nossa vida moral é o toque a finados da utopia. Eu, como mero observador do momento histórico que vivemos, tento percebê-lo: ocupar tudo, mas ocupar tudo em prol de quê? Para mudar a lei eleitoral? Pendurar os políticos de cabeça para baixo? Acabar com os paraísos fiscais? Fazer a Revolução? Venha ela. O que eu quero é saber o que vamos fazer com o mundo depois disso. E não será a deixar que se confunda a lei com a moral.
"Men use up their lives in heart-breaking political struggles, or get themselves killed in civil wars, or tortured in the secret prisons of the Gestapo, not in order to establish some central-heated, air-conditioned, strip-lighted Paradise, but because they want a world in which human beings love one another instead of swindling and murdering one another. And they want that world as a first step. Where they go from there is not so certain, and the attempt to foresee it in detail merely confuses the issue."
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