Começa a ler-se a notícia e a primeira reacção, instintiva, é a de querer acreditar que se trata apenas de uma peça jornalística pouco verosímil, empolada ou distorcida, nas fronteiras da propaganda e agitação política. Deseja-se supor, numa espécie de reacção súbita de auto-defesa, que tudo não seja mais do que uma nota intencionalmente incendiária, vertida por um qualquer movimento menos confiável, que procura estabelecer generalizações a partir de casos muito pontuais ou mal explicados.
A reportagem «Gregos em desespero entregam filhos a instituições» tem contudo a chancela da insuspeita BBC e é assinada pela jornalista Chloe Hadjimatheou, a partir de Atenas. A RTP traduz o texto original na sua página da internet, mas desconheço se o mesmo deu lugar a uma peça noticiosa, num dos telejornais do dia, algures entre os 45 mil euros mensais que Eduardo Catroga vai passar a receber, as declarações alienígenas de Vítor Gaspar no Parlamento ou as conclusões do Boletim de Inverno do Banco de Portugal, que dão conta do agravamento da recessão para 2012, com uma contracção da economia que rondará, afinal, os 3,1% do PIB.
Pouco ou nada há para acrescentar à notícia. Ela é suficientemente clara e sóbria, dispensando o recurso a lamechices, para nos deixar com um nó na garganta. E, bem o sabemos, a Grécia não é o Haiti, por mais perplexos que nos sintamos perante esta sinistra Europa, num impensável início do século XXI. Mas não consigo neste momento deixar de lembrar uns cartazes que vi por diversas vezes em Frankfurt, a apelar à solidariedade dos alemães para com os países do terceiro mundo. Como não posso impedir a memória daquela constatação terrível, de um povo ainda em choque, no desfecho da Segunda Guerra Mundial: «não sabíamos». Ou, ainda, do trecho de uma outra música, igualmente conhecida, que diria hoje «espero que os alemães também amem as suas crianças».
Uma coisa tornou-se contudo mais clara, mais consciente: na imposição da criminosa receita austeritária à periferia do Sul da Europa, não há memória de um apelo, de uma exigência, de um lamento genuino ou até de medidas concretas - por parte da troika e das suas figuras de proa, de Merkel ou de Sarkosy - capazes de impedir, intransigentemente, que os sacrifícios recaíssem sobre os mais vulneráveis, de modo a tornar impossível que situações limite conhecessem a luz do dia. Apenas uma imensa e indisfarçável frieza. A mesma indisfarçável frieza de Pedro Passos Coelho e da generalidade dos membros do seu governo, em delírio por poderem desbravar os caminhos que vão para «além da troika».
(Publicado originalmente no Ladrões de Bicicletas)
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