A dura crítica de Helena Matos ao movimento de ‘indignados’ no Público (13 Out 2011) será certamente tomada por muita gente como apenas mais uma peça de propaganda na luta aguda sobre as saídas da crise actual. É e não é.
Partilho algumas das suas preocupações quanto à ‘democracia genuína’ e a sua valorização da democracia representativa e constitucional. Ela diz basicamente que a democracia legítima deriva das urnas e não da rua. Contudo, o seu argumento parece-me demasiadamente formalista e unilateral.
Em primeiro lugar, há o problema da abstenção nos actos eleitorais. Pode-se afirmar que a abstenção é um exercício consciente expressando uma opção livre de participar ou não e, por isso, não põe um entrave à legitimação das maiorias constituídas nos actos eleitorais. Mas isso é um argumento meramente formal e inválido sociologicamente. Existem dinâmicas de exclusão que produzem uma parte da abstenção e que fazem com que uma parte substantiva dos abstencionistas na nossa sociedade não o seja inteiramente por expressão de livre vontade. Existem dinâmicas de disenfranchisement que operam mesmo sem o exercício de força.
Assim, em determinados momentos a participação na vida política do país ocupa outros palcos e arenas. Isto é sobretudo o caso de situações em que as clivagens de luta social são definidas não apenas por programas partidários elaborados para efeitos eleitorais mas por movimentos de protesto contra poderes instituídos.
Na conjuntura actual de crise do sistema económico e financeiro e da implementação de programas de austeridade, os próprios poderes instituídos – os poderes reais e não apenas formalmente constituídos – não possuem mais legitimidade democrática do que os movimentos de protesto. Não é preciso ser ‘marxista’ e ‘esquerdista’, como insinua Helena Matos, para avançar um argumento sério de que o poder real, que está a definir a crise da enorme maioria da nossa população, é o poder invisível do sistema financeiro capitalista globalizado e o poder visível dos homens que controlam as suas instituições e beneficiam da nossa miséria e insegurança.
Numa situação de crise como a actual, a democracia representativa e constitucional não tem respostas adequadas para largas camadas da população e até cristaliza alianças políticas de interesses que actuam com o intuito de resolver a crise em conformidade com as suas preferências. Estamos numa situação única, de crise do sistema socioeconómico que está a produzir um conflito profundo entre camadas da população.
Seria desejável que a crise pudesse ser resolvida pelo funcionamento normal das instituições da democracia representativa e constitucional. O problema é que os mandatos que emergem de um acto eleitoral podem não ter legitimidade efectiva e absoluta durante todo o prazo da sua vigência e podem nem sequer ser explícitos no seu conteúdo. Isso é de facto o caso de todos os últimos governos – que foram eleitos com base em programas eleitorais que foram contraditos praticamente no dia a seguir a sua tomada de posse. A nossa democracia representativa e constitucional simplesmente não é transparente. E na situação actual qual é o mandato que o nosso Governo está a traduzir nas suas políticas concretas: o mandato dos eleitores ou o entendimento com a troika constituída por entidades alheias e não eleitas? E, enquanto o Governo procura impor as reivindicações da CIP/AIP e os interesses privados esfomeados pelas migalhas do estado social – fazendo da concertação um palco para a exibição da sua prepotência anti laboral e anti-social, aonde poderemos encontrar a legitimidade democrática?
Helena Matos reflecte com bastante razão sobre os riscos envolvidos em situações em que existem reclamações antagónicas quanto à legitimidade do poder político em nome da democracia ‘genuína’. As suas observações com base na história do PREC são relevantes – mas não neste contexto politico. As clivagens sociais e lutas produzidas pela crise actual não são bem equivalentes às clivagens ideológicas e políticas do PREC.
É evidente que as manifestações internacionais e no nosso pais foram organizadas por gente ‘radical’ – entre a qual muitos eventualmente negariam a legitimidade da democracia representativa e constitucional em detrimento da mobilização da rua. Mas então? Isso é inteiramente normal – massas de pessoas não convergem espontaneamente a uma hora e num local sem o apelo de alguém. Todavia, o que caracteriza – pelo menos potencialmente – as manifestações dos ‘indignados’ e de ‘Occupy Wall St.’, nos EUA, é que, apesar do ‘radicalismo’ dos protagonista e das suas palavras de ordem, elas têm encontrado eco e recepção positiva em grandes massas de pessoas – muitas das quais levadas à politica pela primeira vez, ou seja, pessoas normalmente passivas e abstencionistas. É o efeito inevitável desta crise histórica e do transparente desequilíbrio de poder real entre os detentores do capital financeiro e os seus agentes e a enorme massa da população.
Teremos que ver quem se manifesta no Sábado. Quem serão eles e elas? Serão apenas os radicais? Duvido. Irei e não me acho assim tão radical! Mas já agora, acho que os protagonistas radicais destas movimentações estão a fazer um grande serviço à democracia – sejam quais forem os seus motivos ideológicos (e espero que não imponham as suas perspectivas sobre os outros participantes). É que a democracia representativa e constitucional tende a esvaziar-se em tempos de crise se for apenas um palco de legitimação dos interesses do capital financeiro globalizado e precisa necessariamente da inflexão da luta social.
texto divulgado pelo seu autor
a 13 de Outubro de 2011
Assim, em determinados momentos a participação na vida política do país ocupa outros palcos e arenas. Isto é sobretudo o caso de situações em que as clivagens de luta social são definidas não apenas por programas partidários elaborados para efeitos eleitorais mas por movimentos de protesto contra poderes instituídos.
Na conjuntura actual de crise do sistema económico e financeiro e da implementação de programas de austeridade, os próprios poderes instituídos – os poderes reais e não apenas formalmente constituídos – não possuem mais legitimidade democrática do que os movimentos de protesto. Não é preciso ser ‘marxista’ e ‘esquerdista’, como insinua Helena Matos, para avançar um argumento sério de que o poder real, que está a definir a crise da enorme maioria da nossa população, é o poder invisível do sistema financeiro capitalista globalizado e o poder visível dos homens que controlam as suas instituições e beneficiam da nossa miséria e insegurança.
Numa situação de crise como a actual, a democracia representativa e constitucional não tem respostas adequadas para largas camadas da população e até cristaliza alianças políticas de interesses que actuam com o intuito de resolver a crise em conformidade com as suas preferências. Estamos numa situação única, de crise do sistema socioeconómico que está a produzir um conflito profundo entre camadas da população.
Seria desejável que a crise pudesse ser resolvida pelo funcionamento normal das instituições da democracia representativa e constitucional. O problema é que os mandatos que emergem de um acto eleitoral podem não ter legitimidade efectiva e absoluta durante todo o prazo da sua vigência e podem nem sequer ser explícitos no seu conteúdo. Isso é de facto o caso de todos os últimos governos – que foram eleitos com base em programas eleitorais que foram contraditos praticamente no dia a seguir a sua tomada de posse. A nossa democracia representativa e constitucional simplesmente não é transparente. E na situação actual qual é o mandato que o nosso Governo está a traduzir nas suas políticas concretas: o mandato dos eleitores ou o entendimento com a troika constituída por entidades alheias e não eleitas? E, enquanto o Governo procura impor as reivindicações da CIP/AIP e os interesses privados esfomeados pelas migalhas do estado social – fazendo da concertação um palco para a exibição da sua prepotência anti laboral e anti-social, aonde poderemos encontrar a legitimidade democrática?
Helena Matos reflecte com bastante razão sobre os riscos envolvidos em situações em que existem reclamações antagónicas quanto à legitimidade do poder político em nome da democracia ‘genuína’. As suas observações com base na história do PREC são relevantes – mas não neste contexto politico. As clivagens sociais e lutas produzidas pela crise actual não são bem equivalentes às clivagens ideológicas e políticas do PREC.
É evidente que as manifestações internacionais e no nosso pais foram organizadas por gente ‘radical’ – entre a qual muitos eventualmente negariam a legitimidade da democracia representativa e constitucional em detrimento da mobilização da rua. Mas então? Isso é inteiramente normal – massas de pessoas não convergem espontaneamente a uma hora e num local sem o apelo de alguém. Todavia, o que caracteriza – pelo menos potencialmente – as manifestações dos ‘indignados’ e de ‘Occupy Wall St.’, nos EUA, é que, apesar do ‘radicalismo’ dos protagonista e das suas palavras de ordem, elas têm encontrado eco e recepção positiva em grandes massas de pessoas – muitas das quais levadas à politica pela primeira vez, ou seja, pessoas normalmente passivas e abstencionistas. É o efeito inevitável desta crise histórica e do transparente desequilíbrio de poder real entre os detentores do capital financeiro e os seus agentes e a enorme massa da população.
Teremos que ver quem se manifesta no Sábado. Quem serão eles e elas? Serão apenas os radicais? Duvido. Irei e não me acho assim tão radical! Mas já agora, acho que os protagonistas radicais destas movimentações estão a fazer um grande serviço à democracia – sejam quais forem os seus motivos ideológicos (e espero que não imponham as suas perspectivas sobre os outros participantes). É que a democracia representativa e constitucional tende a esvaziar-se em tempos de crise se for apenas um palco de legitimação dos interesses do capital financeiro globalizado e precisa necessariamente da inflexão da luta social.
texto divulgado pelo seu autor
a 13 de Outubro de 2011
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