quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O respeitinho pelas bestas negras II

A barragem de artilharia do grupo empresarial mais poderoso do país continua. Depois da vigária Vaz, é a vez de José Maria Ricciardi. O presidente da Espírito Santo Investimentos (ESI) afirma que
"«Temos de evitar a reestruturação da divida o mais possível porque se fizermos perder dinheiro àqueles que nos emprestaram dinheiro, esses não vão voltar a emprestar outra vez», disse José Maria Ricciardi (...)"
Tal como a coleguinha da Espírito Santo Saúde, Ricciardi é mentiroso e serve-se da ignorância militante de quem meneia a cabeça para a frente e para trás, mostrando, à saciedade, que o problema fundamental da cultura política portuguesa é a instituição do respeitinho. Insisto neste ponto: enquanto permitirmos que esta classe de mentirosos compulsivos, de coloração corporativa evidente, se bamboleie pela esfera pública sem escrutínio, o país continuará a saque.

Se retirarmos a carga moral à enormidade proferida pelo presidente da ESI, ficamos com o seguinte: se Portugal decidir reestruturar a sua dívida, impondo condições a quem cobrou juros para comprar Obrigações do Tesouro, ficará, ad eternum, arredado dos mercados obrigacionistas.

Tendo em conta que a afirmação não prevê excepções nem avaliações contextuais - e é na ortodoxia do medo que esta classe rentista deposita a sua confiança e o seu poder - vale a pena ler este paper  do... Banco de Espanha. Sim, o Banco de Espanha, instituição do Eurossistema.

Dos nove casos analisados, não existe UM em que a reestruturação da dívida soberana tenha causado uma perda unilateral e permanente de acesso aos mercados obrigacionistas. Em 2011, todos os países avaliados, incluindo aqueles que entraram em incumprimento, recuperaram esse acesso, de forma total ou condicional. Ricciardi não permite excepções, pelo que a existência de um caso singular de reestruturação seguido de recuperação do acesso já destruiria o argumento. Na verdade, os spreads parecem baixar após a reestruturação, indicando que os "mercados obrigacionistas", essas divindades ocultas, são menos moralistas que Ricciardi e companhia.

Além disso, o incumprimento unilateral não é o pior cenário imaginável. Nas páginas 9-10, lemos o seguinte:

"A crucial factor shaping debt  restructurings  appears  to  have  been  whether  the  sovereign  remained current  on  debt servicing while negotiating with private creditors or whether, instead, the sovereign defaulted on its obligations. The first of these two scenarios corresponds to pre-emptive restructurings, which  tended  to  be  concluded  more  quickly  and  in  more  cooperative  terms,  with  a  larger proportion  of  creditors  accepting  the  government’s  offer,  and  with  a  faster  resumption  of access  to  international  financial  markets.  On  the  other  hand,  sovereigns  in  the  second scenario  secured  larger  debt  relief  from  private  creditors,  pointing  at  the  shift  in  bargaining power  from  private  investors  to  governments  that  may  be  associated  with  the  act  of defaulting."
Portanto, o incumprimento unilateral desacelera a recuperação do acesso a fontes de financiamento, mas não a impede. Ricciardi é, portanto, pouco informado, mentiroso ou sofista profissional. De facto, a ameaça de incumprimento unilateral aumenta o poder negocial do soberano e modifica fundamentalmente a estrutura de poder subjacente a estas negociações. Em bom português, quem tem cu tem medo. E a sede de lucro, tão glorificada pela vigária Vaz, fá-los, aos investidores, pensar duas vezes, se um soberano levantar a ganipa e mostrar que, na verdade, o poder do capital é mais precário do que o aparato mediático pretende fazer crer.

Este relatório é importante porque estrutura a sua realidade de acordo com a lógica neoliberal. Não precisamos de concordar com ela para usá-la no sentido de mostrar que verdugos como Ricciardi nem sequer conseguem ser coerentes com a lógica que defendem; basta-nos olhar para dados empíricos, apesar de mal interpretados, e percebemos que todas estas efabulações não passam de estratagemas para desinformar a população portuguesa e meter-lhe medo. Se quisermos ir mais longe, e devemos fazê-lo, isto já não chega; temos mais e melhores argumentos. A perda de soberania é inteiramente voluntária e reversível.

Se tivermos vontade de questionar estes produtores de verdade, a informação está aí. Servem-se da honestidade fundamental de quem trabalha para defender os sistemas de extracção de renda que lhes garantem as mansões e os veleiros. Já chega.

2 comentários:

  1. Todo este discurso moralista é profundamente mentiroso e repugnante, porque explora os princípios e valores das pessoas comuns nas suas interacções diárias umas com as outras. No nosso dia-a-dia, se te emprestam, tens de pagar, e este princípio simples torna a vida mais simples, fomenta a confiança entre as pessoas, e torna-nos a todos mais felizes.

    Mas nada disto é assim nos mercados financeiros internacionais: o objectivo é o lucro. Se for mais vantajoso para um país não pagar, esse país não deve pagar - qualquer banco o faria sem pensar duas vezes.
    E é, aliás, por isto (ou alegadamente por isto) que as nossas taxas de juro atingiram os valores astronómicos que conhecemos: porque existe risco associado a emprestar-nos dinheiro.
    Não é possível cobrar tais taxas de juro e fazer julgamentos morais sobre quem se propõe a reestruturar, porque caso contrário os bancos podem simplesmente aumentar as taxas de juro e ver os povos serem açoitados para os governos lhes pagarem.
    As pessoas têm de perceber isto, ou continuarão a ser enganadas, na sua boa fé, por esta corja medíocre.

    Igualmente importante, e na mesma linha deste post - a de analisar, empiricamente, através de dados históricos, o verdadeiro impacto de uma reestruturação, para lá dos discursos chantagistas desta gente e dos seus mordomos no poder -, vale a pena ler:
    http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2011/10/o-custo-de-uma-reestruturacao-da-divida.html

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