"(...) aquilo a que chamo a mão esquerda do Estado, o conjunto de agentes das chamadas instituições sociais, que constituem os vestígios das lutas sociais do passado. Eles [os agentes] opõem-se à mão direita do Estado, os tecnocratas do Ministério das Finanças, os bancos públicos e privados, e os gabinetes ministeriais. (...) Penso que a mão esquerda do Estado considera que a mão direita do Estado não sabe ou, pior, já não quer saber do que a mão esquerda faz".
Pierre Bourdieu, Contrafogos
Na minha memória, chamo-lhe Sebastião. Não sei porquê. Lembro-lhe a tez morena, o olhar bravio e fugidio, uma angústia imensa, pérfida, consome-lhe as veias pulsantes (vejo-lhe as têmporas a rebentar, ali sentado). E eu inquisidor, camisa de manga curta, ténis, barba por fazer, juventude inerte em ares de burocrata. Peço-lhe um impresso, o enésimo impresso, a enésima confirmação de que ele, Sebastião, quarenta e tal anos, é uma semi-pessoa digna, a quem posso exigir "apresentações quinzenais". O sistema informático não funciona. Ligo para o Centro de Emprego, de onde me respondem, enfastiados, com os dados de que necessito. Sebastião move-se na cadeira. A sordidez pesa no ar. Ele reconhece-me. Não a cara. Reconhece-me o semblante. Reconhece-me o estômago revolto. A raiva que preciso de esconder, todos os dias daqueles meses, para garantir que a burocracia se mantém de pé e aquelas pessoas cumprem a sua via sacra, de papel na mão, empreendedores e empreendedoras em potência, porque José Sócrates e Pedro Passos Coelho conhecem a palavra "desemprego", mas não lhe conhecem a lâmina fria, a lâmina fria com que corta vidas inteiras e nos destroça a todos - aos humilhados e humilhadores, a quem dá o impresso e a quem o recebe, reduzindo o "desempregado", o "DLD", a cidadã em busca de "empregabilidade" a um número numa base de dados. Para que, de futuro, possa haver convocatórias aleatórias para "sessões de estímulo à empregabilidade", "formação" em centros de formação profissional desorçamentados e o contentamento de saber que, se tiveres filhos, é melhor pensares no Skype e em e-parenting para educá-los.
Sebastião reconhece-me. Tenta balbuciar umas palavras, mas chegou ao termo da resistência. Chora. São borbotões de fúria. Noto que não fala português. Fala humano, e isso basta. Os seus olhos flamejantes falam-me da família, que tenta ajudar mas já não consegue; esgotou os biscates, esgotou-se. Fala-me das empresas a quem envia currículos e a quem entrega, em mãos, mãos cheias de calos e dedos engrossados pelo trabalho duro, uma folha de registo. Às vezes, pedem-lhe dinheiro para carimbar a tal folha - prática ilegal, mas o desempregado vive num limbo, faca e queijo na mão de gente com escrúpulos transaccionáveis em mercado aberto (pois então); o desempregado só tem uma política, o trabalho; o desempregado é isso, desempregado. E eu fui uma roda na engrenagem, uma roda dentada que reduziu milhares de olhos tremeluzentes a números e estatísticas.
Sebastião soluça. Fala-me de regressar. Não sei se se refere a regressar a uma época perdida ou a uma qualquer terra que o viu nascer. Não sei. Também tenho vontade de chorar, mas não de derrota - e essas são as lágrimas de Sebastião. Não somos todos heróis, porra. Sobrevém o instinto de se recompor, mas chorar lágrimas de derrota num Gabinete de Inserção Profissional (sic) não é digno, não sugere um porvir esperançoso e não é um momento poético. É um momento triste, que nunca mais esquecerei. É um momento patético e indigno.
Por isso, quando Pedro Passos Coelho fala de "oportunidade", tenho vontade de o mandar à merda e acreditar que tem os dias contados enquanto Primeiro-Ministro de uma República em que não acredita, que despreza e quer matar. Assim mesmo. Desculpem-me os Josés Manuel Fernandes da nossa praça, que se dispõem a debater políticas de emprego e questões laborais, do alto da cátedra que se auto-atribuem; desculpem-me as sindicalistas que se afadigam a rebater, com argumentos potentes, as banalidades de um cidadão cujo currículo revela a sua incapacidade para compreender as razões pelas quais uma pessoa atingida pelo desemprego não tem uma oportunidade, não é piegas e sim, tem medo de arriscar. Porque, se Passos Coelho percebesse a situação de uma pessoa desempregada, talvez pudesse explicar-nos quão provável é um banco, no contexto actual, emprestar a um trabalhador digno e disposto a criar o seu posto de trabalho, que não saiba o que é uma CDO, uma offshore ou a maturidade de um título de dívida soberana. E que me desculpem todas as minhas irmãs e irmãos de luta e combate por um mundo melhor, porque sei que ter vontade de mandar um facínora à merda é tão útil como ficar calado e não fazer nada; não vos ajuda e não acrescenta seja o que for. Mas nisto, neste assunto específico, não tenho palavras eruditas, gráficos bonitos ou visões abrangentes. Só tenho os olhos de Sebastião (e de onde virá o nome?) e uma raiva que mal consigo reprimir.
Oiço Passos Coelho e lembro-me de Sebastião. Lembro-me de ter pedido ao "desempregado" seguinte um momento para me recompor. Fui à casa de banho, chorei de raiva contra a minha hipocrisia e esmurrei um azulejo cinzento (creio) até sentir que a raiva havia ficado suficientemente aplacada. "Próxima pessoa, por favor".
Por isso, senhor Primeiro Ministro, vá para o caralho mais o seu desemprego como oportunidade. E leve, de caminho, todos os algozes e verdugos que concordam consigo e usam a mão direita do Estado para manejar uma vergasta com que zurzem milhões de seres humanos. O mundo seria um lugar menos miserável com a vossa ausência.
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