"«Temos de evitar a reestruturação da divida o mais possível porque se fizermos perder dinheiro àqueles que nos emprestaram dinheiro, esses não vão voltar a emprestar outra vez», disse José Maria Ricciardi (...)"Tal como a coleguinha da Espírito Santo Saúde, Ricciardi é mentiroso e serve-se da ignorância militante de quem meneia a cabeça para a frente e para trás, mostrando, à saciedade, que o problema fundamental da cultura política portuguesa é a instituição do respeitinho. Insisto neste ponto: enquanto permitirmos que esta classe de mentirosos compulsivos, de coloração corporativa evidente, se bamboleie pela esfera pública sem escrutínio, o país continuará a saque.
Se retirarmos a carga moral à enormidade proferida pelo presidente da ESI, ficamos com o seguinte: se Portugal decidir reestruturar a sua dívida, impondo condições a quem cobrou juros para comprar Obrigações do Tesouro, ficará, ad eternum, arredado dos mercados obrigacionistas.
Tendo em conta que a afirmação não prevê excepções nem avaliações contextuais - e é na ortodoxia do medo que esta classe rentista deposita a sua confiança e o seu poder - vale a pena ler este paper do... Banco de Espanha. Sim, o Banco de Espanha, instituição do Eurossistema.
Dos nove casos analisados, não existe UM em que a reestruturação da dívida soberana tenha causado uma perda unilateral e permanente de acesso aos mercados obrigacionistas. Em 2011, todos os países avaliados, incluindo aqueles que entraram em incumprimento, recuperaram esse acesso, de forma total ou condicional. Ricciardi não permite excepções, pelo que a existência de um caso singular de reestruturação seguido de recuperação do acesso já destruiria o argumento. Na verdade, os spreads parecem baixar após a reestruturação, indicando que os "mercados obrigacionistas", essas divindades ocultas, são menos moralistas que Ricciardi e companhia.
Além disso, o incumprimento unilateral não é o pior cenário imaginável. Nas páginas 9-10, lemos o seguinte:
"A crucial factor shaping debt restructurings appears to have been whether the sovereign remained current on debt servicing while negotiating with private creditors or whether, instead, the sovereign defaulted on its obligations. The first of these two scenarios corresponds to pre-emptive restructurings, which tended to be concluded more quickly and in more cooperative terms, with a larger proportion of creditors accepting the government’s offer, and with a faster resumption of access to international financial markets. On the other hand, sovereigns in the second scenario secured larger debt relief from private creditors, pointing at the shift in bargaining power from private investors to governments that may be associated with the act of defaulting."Portanto, o incumprimento unilateral desacelera a recuperação do acesso a fontes de financiamento, mas não a impede. Ricciardi é, portanto, pouco informado, mentiroso ou sofista profissional. De facto, a ameaça de incumprimento unilateral aumenta o poder negocial do soberano e modifica fundamentalmente a estrutura de poder subjacente a estas negociações. Em bom português, quem tem cu tem medo. E a sede de lucro, tão glorificada pela vigária Vaz, fá-los, aos investidores, pensar duas vezes, se um soberano levantar a ganipa e mostrar que, na verdade, o poder do capital é mais precário do que o aparato mediático pretende fazer crer.
Este relatório é importante porque estrutura a sua realidade de acordo com a lógica neoliberal. Não precisamos de concordar com ela para usá-la no sentido de mostrar que verdugos como Ricciardi nem sequer conseguem ser coerentes com a lógica que defendem; basta-nos olhar para dados empíricos, apesar de mal interpretados, e percebemos que todas estas efabulações não passam de estratagemas para desinformar a população portuguesa e meter-lhe medo. Se quisermos ir mais longe, e devemos fazê-lo, isto já não chega; temos mais e melhores argumentos. A perda de soberania é inteiramente voluntária e reversível.
Se tivermos vontade de questionar estes produtores de verdade, a informação está aí. Servem-se da honestidade fundamental de quem trabalha para defender os sistemas de extracção de renda que lhes garantem as mansões e os veleiros. Já chega.