por Enric Llopis | Attac Mallorca
O dogma neoliberal impõe, infalivelmente, aos países que enfrentam dificuldades em lidar com a sua dívida, pública ou privada, planos de resgate e cortes sociais, como condição para aceder a novos empréstimos. Estes princípios da ortodoxia liberal, defendidos até às últimas consequências por instituições como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Central Europeu, são bem conhecidos nos países dependentes da África e da América Latina, cujas populações os sofreram na pele. A disciplina social ligada à crise da dívida estende-se agora aos países da periferia europeia: Grécia, Irlanda e Portugal, para já.
Para os economistas do sistema, não há alternativa. No entanto, organizações como o Comité para a Anulação da Dívida Externa do Terceiro Mundo (CATDM), trabalham há mais de duas décadas em propostas socialmente mais justas, como as auditorias à dívida, com grande potencial transformador no actual contexto europeu de crise das dívidas soberanas. O grupo valenciano do CATDM explicou esta abordagem, normalmente ignorada pelos meios de comunicação oficiais, num encontro em Ca Revolta (Valência).
As auditorias partem da análise da origem e composição da dívida pública de um país, com o fim de determinar se é «legítima» ou «odiosa.» Se for, deve proceder-se à sua anulação. De acordo com Laura Pérez, do CATDM-Valência, «trata-se de um direito democrático essencial, como o direito à informação pública, para além de uma aposta firme na mobilização e participação dos cidadãos nas questões do Estado; e é, no fundo, um instrumento de controle da transparência e da conduta democrática dos poderes públicos.»
Yves Julien, também membro do CATDM-Valência, insiste na excelente oportunidade que a actual crise financeira representa para levar a cabo auditorias, em alternativa aos planos de austeridade. «Permitem abrir um novo espaço de reflexão e participação democrática perante os resgates da banca privada, o Pacto do Euro e todo o tipo de reformas neoliberais, em relação às quais nos dizem que não há alternativa», sublinha. E acrescenta uma ideia fundamental: «os governos utilizam frequentemente a dívida pública como argumento para impor planos de austeridade.»
O estudo da dívida contraída por um país tem de incluir um conjunto de variáveis: o contexto histórico e social; quem contratualizou os créditos; quem são os credores e qual o seu comportamento; o destino dos recursos; as disposições do contrato; a evolução das taxas de juro; a percentagem do orçamento público e do PIB dedicados ao pagamento da dívida; as políticas de privatização realizadas; e a relação entre a dívida e a distribuição da riqueza, entre outros aspectos.
Para além do CATDM, organizações sociais como o Jubileo Sur, o Jubileo 2000, o Quien debe a Quien, o Observatori del Deute de la Globalització e a Red Ciudadana por la Abolición de da Deuda Externa (RCADE) têm trabalhado no conceito de auditoria, que, em na prática, se prende com a resposta a três perguntas: Quanto se deve? Porque se deve (nesta pergunta radica a essência do problema)? A quem se deve?
A análise do débito para comprovar a sua legitimidade tem uma função eminentemente prática, já que o corte de direitos básicos associado ao endividamento afecta directamente a vida quotidiana das populações. Mas todo este trabalho parte de premissas teóricas bem elaboradas e conceitos rigorosamente definidos. A dívida ilegítima deriva de empréstimos cujos fundos foram utilizados, por exemplo, para a violação de direitos humanos ou a destruição do meio ambiente. A outra noção chave, que é a de «dívida odiosa», requer três condições: empréstimos assumidos por um regime despótico, utilização contra o bem-estar da população, e tudo isso com o conhecimento dos credores.
Não é difícil encontrar exemplos dos dois conceitos. Entre outros casos, considera-se dívida ilegítima a que foi contraída para a construção da barragem de Inga (Congo-Zaire), a central nuclear de Bataan (Filipinas) ou o projecto de barragem hidroeléctrica de Yacireta (Argentina-Paraguai). Pode catalogar-se como dívida odiosa os gastos militares das ditaduras ruandesas entre 1990 e 1994, os desfalques de Fernando Marcos nas Filipinas e a dívida da ditadura grega dos coronéis, que quadriplicou em sete anos.
Mas o modelo mais completo, e o paradigma da aplicação das auditorias, é o Equador durante a presidência de Rafael Correa. Entre 2007 e 2008, o governo cancelou dívidas consideradas ilegítimas contraídas por entidades públicas com bancos privados ao longo de 20 anos, que chegaram aos 300 milhões de dólares. Este dinheiro foi, ao invés, utilizado para melhorar a saúde pública e a educação, e criar de postos de trabalho. Também se decidiu, em Novembro de 2008, suspender o pagamento de obrigações de dívida que venciam em 2012 e 2030. Tudo isto após uma análise da origem da dívida, que foi classificada como «eminentemente especulativa e fonte de uma perda de capacidade soberana do Estado.»
Partindo do exemplo equatoriano (entre outros), estão a ser impulsionadas iniciativas semelhantes noutros países, sobretudo naqueles mais afectados pela denominada crise do endividamento. Na Grécia, alguns deputados, intelectuais e organizações cidadãs constituíram uma comissão independente para estudar as contas públicas do país, cada vez mais sitiadas pelos especuladores internacionais. Em Maio deste ano, a Grécia acolheu uma Conferência Internacional da Promoção de Uma Auditoria à Dívida, e na Tunísia e na Irlanda há organizações cidadãs a trabalhar na mesma linha.
As auditorias estão, em todos os casos, associadas a uma recusa frontal dos planos de resgate e dos cortes sociais. É o que explica Jerome Duval, do CATDM: «A redução dos défices públicos tem de realizar-se através do aumento das receitas ficais, incidindo sobretudo sobre as empresas e o capital financeiro, os rendimentos, o património das famílias mais ricas e as transacções financeiras. Para conseguir isto, é imprescindível romper com a lógica capitalista e impor mudanças radicais na sociedade.» E acrescenta que, actualmente, «as instituições financeiras, culpadas pela crise, enriquecem e especulam com as dívidas dos estados, e isto com a cumplicidade activa do BCE e do FMI.»
Por isso, e uma vez que o endividamento público se insere numa ofensiva capitalista global, o CATDM propõe que as auditorias sejam acompanhadas por um conjunto de medidas: a luta contra a fraude fiscal das grandes empresas e dos mais ricos; a redução drástica do tempo de trabalho, para criar emprego ao mesmo tempo que se aumentam os salários e as pensões; e a nacionalização das numerosas empresas e serviços privatizados nos últimos 30 anos. Tudo isto acreditando que outro mundo é possível, e está em construção.
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