A leitura do programa do novo governo por quem esteja desempregado/a resulta numa experiência algo deprimente. O programa não traz muitas novidades, é verdade, não é mais do que uma exultação do acordo firmado com a Troika (CE/FMI/BCE), procurando concretizar as medidas mais imediatas. Uma versão mais completa pode ser encontrada no Programa de Ajustamento Económico para Portugal (PAEP), publicado também ontem, mas no site da Comissão Europeia (CE). Diz o programa de governo (pp. 7): a austeridade na despesa do Estado, sujeita a modelos de eficiência, virá a constituir, a prazo, uma alavanca para a melhoria da produtividade, para o incremento do potencial de crescimento e para a criação de emprego. Pressupõe que a política de austeridade, mais do que inevitável, é uma condição para o relançamento económico, pois é o passaporte para ganhar acredibilidade perdida junto aos investidores internacionais, esse sim o objectivo primordial (pp.16) do programa. A criação de emprego está assim subordinada a esse objectivo, para o qual é necessário:
- Reduzir a médio prazo a dívida publica, estabelecendo como prioridade a diminuição do peso do Estado, nomeadamente através da redução de pessoal e através de um desenfreado programa de privatizações. Isto significa que o Estado renunciará aos direitos especiais enquanto accionista (Golden Shares), e inclui a privatização total da EDP e da REN, da TAP, da ANA e de vários sectores da Caixa Geral de Depósitos, nomeadamente o dos seguros. Está prevista ainda a privatização dos CTT, segundo o modelo definido no acordo com a Troika. Não tenho dúvidas de que estas medidas agradam aos “mercados”, visto que lhes abrem os horizontes de negócio, mas não sei se estes as considerarão suficientes e tenho muitas dúvidas que venham a criar emprego. Pelo contrário, reforçam a tendência verificada de forte retracção do emprego público e reduzem em muito a capacidade de intervenção pública no mercado.
- Estabilização do sistema financeiro. Curiosamente, este é um dos objectivos fundamentais assumidos pelo PAEP e nos compromissos com a troika e que aparentemente parece ter-se eclipsado no programa de governo. Pretende-se abordar, de forma imediata, as “vulnerabilidades” do sector privado, garantindo uma desalavancagem ordeira e equilibrada. Um dos elementos chave dessa desalavancagem passa pela capitalização da banca e inclui um fundo de apoio à solvabilidade no valor de 12 mil milhões. A não inclusão deste ponto no programa apresentado no parlamento parece um mau indicador quanto a preocupações com a transparência e ao respeito do novo governo por esse órgão de soberania.
- Finalmente, a cereja no bolo consiste numa série de reformas estruturais. Um dos objectivos chave destas reformas é aumentar o crescimento do PIB através do estímulo à produtividade e à utilização de mão-de-obra. No programa de governo fala-se em modernização, no PAEP publicado pela CE fala-se em flexibilização. O programa de governo fala na criação de “sistema dual” no mercado de trabalho, em que será introduzida um novo regime contratual sem afectar os contratos (pp. 26). Esta formulação é algo estranha visto que segmentado já o mercado de trabalho português é. Os programas visam, não só usar os cortes salariais na função pública para pressionar umamoderação salarial no sector privado - desiluda-se que ainda vai na conversa dos privilégios dos funcionários públicos -, como levar a cabo uma profunda reforma do mercado de trabalho, que agravará esta segmentação para depois nivelar por baixo, adoptando um único tipo de contrato de trabalho, de tempo indeterminado, mas facilitando a possibilidade de despedimento, através de uma redefinição do conceito de justa causa. Como questionam, e bem, @s Precári@s Inflexíveis, será que estamos a assistir ao início do fim dos contratos a termo, ou ao fim dos contratos com direitos?
O programa inclui ainda uma abordagem cautelosamente equilibrada para mitigar os impactos sociais dessas medidas, ou seja, as políticas sociais - dada a sua importância abordarei num outropost. Por agora, assinalo apenas como estão desenhadas as prioridades económicas deste programa: primeiro fazer recuar a capacidade de intervenção pública na economia, estabilizar o sistema financeiro e reestruturar a economia através da precarização das relações laborais; depois disto tudo virá, se possível, se houver crescimento, a criação de emprego. É por isso que considero que as estimativas de desemprego apresentadas pela Comissão Europeia [2011/2015 – 12,2%; 12,9%; 12,4%; 11,6%; 10,6%] ou são irrealistas ou são desonestas, e parecem naturalizar a desistência [de procura de emprego] de uns e entrada precária no mercado de trabalho de outros – afinal, nem contabiliza os desencorajados, nem o subemprego.
Apesar da palavra desemprego ser recorrente em ambos os documentos, quem está desempregado/a pode tratar de (des)esperar sentado: depois de ver a banca repetidamente resgatada e os seus direitos de protecção social a serem progressivamente corroídos, será utilizado/a como arma de arremesso para a precarização da situação de quem tem emprego. Em suma, parece ser claro que o direito ao trabalho é, cada vez, mais uma fabulação nas políticas governamentais: para arranjar emprego teremos de disputá-lo com quem o tem ou regateá-lo com empregadores. Na verdade, estamos à rasca e tudo indica que assim continuaremos. Até quando?
Também publicado em ensaio sobre o desemprego
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