Por Ricardo Cabral | The Portuguese Economy
Texto do economista Ricardo Cabral, que dificilmente poderá ser acusado de heterodoxia…
Os detalhes do acordo de ajuda financeira entre Portugal e a UE e o FMI (Ver Memorandum of Understanding on Specific Economic Policy Conditionality ou MoU) tornados públicos pareciam sugerir que a troika CE/BCE/FMI que o negociou tinha aperfeiçoado um pouco a sua estratégia e aprendido com as experiências da Grécia e da Irlanda.
Em vez disso, o acordo com Portugal, tal como é apresentado no MoU, exagera no propósito. A mensagem implícita da Troika parece ser que a abordagem está a falhar na Grécia e na Irlanda porque não se foi suficientemente longe.
O acordo inclui medidas importantes e impressiona pelo seu alcance. Contudo, também sugere que a troika pode não ter tido tempo de verificar os factos em matérias como, por exemplo, o comércio externo ou o preço da habitação. Dados recolhidos num artigo de 2008 por Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff sugerem que Portugal teve um dos menores aumentos no preço da habitação entre 2002 e 2006, num conjunto de 43 países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Posto isto, há que ponderar o porquê de a troika ter imposto medidas que tornam mais caro comprar casa, numa altura em que inúmeras famílias estão a ser forçadas a vender as suas habitações para evitar a execução de uma hipoteca ou mesmo devido a essa hipoteca.
Mais importante ainda, o acordo apresenta sérios problemas de execução e conteúdo, dos quais se devem enfatizar quatro:
Primeiro que tudo, não se discutem as causas da crise, ou seja, o que levou Portugal a esta situação. É como ir ao médico com uma doença grave e voltar sem um diagnóstico mas, em vez disso, com 222 prescrições diferentes (o número de medidas de acção principais presentes nas 34 páginas do MoU, aproximadamente o dobro das que constavam no memorando da Grécia e da Irlanda) e esperar que alguns dos medicamentos funcionem. Não funcionarão. A saúde do paciente deteriorar-se-á. Portugal enfrenta uma crise da balança de pagamentos e de dívida externa, e não apenas uma crise da dívida soberana. Talvez porque o MoU não identifica as causas da crise, as políticas de resposta são erradas e muito provavelmente vão falhar.
Para além do mais, graças ao elevado número de medidas, não é possível que um futuro governo, independentemente do partido no poder, seja capaz de cumprir inteiramente os termos do acordo. O mais certo é que o governo falhe logo de início vários objectivos do programa, colocando, desnecessariamente, em causa a sua competência junto dos parceiros europeus.
Em Segundo lugar, o acordo não questiona nem responde à questão da responsabilidade pelo que correu mal. Pode argumentar-se que não é possível nem relevante neste momento fazê-lo: mas, pelo contrário, é importante saber quem errou, uma vez que as economias de mercado têm tudo a ver com risco, recompensa e punição. É, também, possível encontrar os responsáveis. Só temos de olhar para à nossa volta.
Quem são os maiores devedores que não podem pagar? Resposta: no caso português, o governo e os bancos. Por isso, devem ter cometido erros. Nisto, a situação revela-se idêntica à encontrada na Grécia e na Irlanda.
Quem são os maiores credores, agora com medo de não receberem o seu dinheiro de volta? Resposta: os grandes bancos e seguradoras, numa série de países, e o Eurosistema (BCE e os bancos centrais dos países da zona euro). Na realidade, o Eurosistema é o maior credor de Portugal, assim como do sistema bancário e governos da Grécia e Irlanda. Portanto, estes credores também cometeram erros.
As consequências destes erros deviam ser suportadas por quem os cometeu. Mas não é isso que está a acontecer – em vez disso, os custos do resgate estão a ser assumidos exclusivamente pelos cidadãos e contribuintes portugueses. Esta não é a cultura de mérito e responsabilização que a União Europeia merece.
Terceiro, o acordo centra-se nos pequenos detalhes, num raciocínio pouco baseado na realidade no que se refere a uma série de áreas, que vão desde a regulação e suporte do sector financeiro e organização do sistema judicial à administração local e regional, apenas para citar algumas. O grande número de medidas impossibilita qualquer tentativa séria de avaliar a sua eficácia individual. De preferência, o MoU deveria seleccionar os 20% de ideias com 80% de impacto económico (cada uma com um impacto económico acima de, digamos, 250 milhões de euros por ano) e examiná-las uma a uma, de forma consistente. Caso contrário, trata-se apenas de atirar areia para os olhos.
Finalmente, não está a ser implementada correctamente uma política com um impacto económico alargado. Mais especificamente, ao lidar com os bancos portugueses, cuja combinação de passivos representa 250% do PIB, o acordo não adopta as melhores práticas internacionais. Estas teriam requerido, antes de qualquer aumento de capitais ou garantias, a introdução de uma resolução especial para os bancos (Regime Especial de Resolução com acções correctivas imediatas), tal como as disponíveis, por exemplo, nos EUA e no Reino Unido.
Uma resolução determinada e imediata relativamente aos bancos iria, entre outras coisas, impor perdas aos credores dos bancos em falência e forçar a saída dos seus gestores. Em vez disso, a troika exigiu aos contribuintes portugueses que continuassem a suportar o sistema bancário, através de garantias e aumentos de capital que vão até 47 mil milhões de euros (27,2% do PIB). Para além do mais, em vez de substituir as equipas de gestão dos bancos em falência, seguindo por exemplo as práticas do depósito federal norte-americano (US FDIC), o MoU indica que os aumentos de capital «serão formulados de forma a garantir o controlo da gestão dos bancos por parte dos seus proprietários não-estatais.»
Isto é, o contribuinte irá provavelmente recapitalizar o sistema bancário privado, nacionalizando-o na prática, e no entanto a gestão continuará a ser feita pelos antigos proprietários. Uma explicação possível para esta passividade da troika na aplicação de um Regime Especial de Resolução aos bancos prende-se com o conflito de interesses por parte de um dos seus membros, o BCE. O BCE é membro do Eurosistema, que enfrentaria grandes perdas caso se aplicasse aos bancos a resolução apropriada de forma imediata.
A ideia implícita no MoU de que um país inteiro pode ser reestruturado – apesar de tudo, a 38.ª maior economia mundial – com base num documento delineado em 3 semanas e 34 páginas, é impressionante. O acordo procura reinventar a roda e, no entretanto, destruir o que ainda funciona. Este tratamento da Islândia, Hungria, Letónia, Grécia, Irlanda e Portugal começa a parecer uma versão ocidental do Grande Passo em Frente da China: objectivos impossíveis baseados em nada mais do que pura ideologia. É simplesmente demasiado triste.
Tradução de Franciso Venes
Começo a convencer-me que isto já lá não vai com pacifismo e manifestações na rua...
ResponderExcluir