segunda-feira, 6 de junho de 2011

Porque devemos reestruturar a dívida pública e como fazê-lo

Porque devemos reestruturar a dívida pública e como fazê-lo 

4 Junho 2011

 

Alberto Garzón Espinosa – Conselho Científico da ATTAC Espanha

 

Como é sabido, a crise financeira transformou-se em crise económica, porque as entidades financeiras encarregadas de financiar a actividade produtiva deixaram de fazê-lo, temendo piorar o estado dos seus balanços, já muito deteriorados por activos tóxicos. Activos tóxicos que recebiam esse nome porque, ainda que o preço de mercado fosse, formalmente, muito alto, careciam, na realidade de valor real - mais tarde ou mais cedo, teríam que contabilizar-se como perdas.

A quebra da concessão sôfrega de crédito conduziu a uma paralização do consumo e investimento nas várias economias nacionais; em Espanha, além disso, fez rebentar, definitivamente, a sua particular bolha imobiliária. Uma bolha que havia sido tornada possível pelas entidades financeiras, credoras de quantidades brutais de dinheiro, obtido nos mercados financeiros (empréstimos interbancários, emissão de obrigações e titularização, etc. ). Durante todos estes anos, o crédito privado foi o combustível de um modelo produtivo totalmente esgotado e que, na sua queda, provocou taxas de desemprego socialmente insustentáveis.

Para tentar conter a crise, os Estados europeus foram obrigados a desembolsar quantias enormes de dinheiro público. Por um lado, aprovaram resgates financeiros às entidades com problemas e, inclusivamente, em muitos casos, nacionalizaram-nas por completo. Por outro lado, levaram a cabo programas de estímulo económico cujo objectivo era criar emprego público e, desse modo, travar a queda do consumo e do investimento. Tudo isso conduziu ao incremento da despesa pública.

Do lado da receita, os Estados lidaram com as dificuldades próprias de um momento de crise económica. Dada a importância dos impostos na receita dos Estados (são a maior fonte de receitas públicas; em menor medida, os lucros das empresas públicas), e dado que esses impostos estão associados à renda, ao lucro e ao consumo... com a queda dessas variáveis, também as receitas públicas caíram.

Assim, a queda das receitas e o aumento das despesas causou o aumento do défice orçamental (a diferença entre receitas e despesas). Algo que o próprio Fundo Monetário Internacional reconheceu. E, para financiar esse desequilíbrio, os Estados tiveram que incrementar o seu endividamento exterior, ou seja, tiveram que emitir mais dívida.

Ver Gráfico

Como se percebe no gráfico, o endividamento de todos os países aumentou como consequência da crise, e não ao contrário, como alguns autores têm sugerido, tentando dissociar a responsabilidade bancária da degradação da situação fiscal dos países.

A emissão de dívida é um processo simples. Os Estados emitem títulos que proporcionam uma rentabilidade determinada ao seu comprador. No chamado mercado da dívida pública, os investidores (bancos, fundos de investimento, multimilionários...) participam no leilão e, desse acto, surge a taxa de juro paga pelo Estado sobre os títulos. Ao fim e ao cabo, os títulos de dívida pública constituem o processo pelo qual o Estado se endivida perante outros agentes (que também podem ser outros países). Quanto maior o número de compradores no leilão, menor o preço pago pelo Estado.

É evidente que a dívida contraída pelo Estado gera taxas de juro que é necessário pagar com regularidade (na forma de cupões) e os quais é necessário financiar, de alguma forma. Dado que a crise se mantém e a situação fiscal do Estado (a relação receitas-despesas) também se mantém, o Estado vê-se obrigado a reendividar-se. Aumentam, portanto, os chamados Encargos da Dívida, e pode entrar-se num círculo vicioso de que é muito complicado sair.

É necessário acrescentar, a isto, os processos especulativos, que tornam a carga da dívida ainda maior ou menos eficiente. Os investidores podem especular contra a dívida pública (como fizeram com a Grécia ou a Espanha), e provocar, assim, o encarecimento da emissão futura de dívida pública (aumentando a rentabilidade para o investidor). Tudo isto intensifica o círculo vicioso anterior.


O futuro da dívida pública e os planos de ajustamento

As medidas dos governos europeus têm o objectivo de aplicar os planos de ajustamento. Querem corrigir o défice orçamental através de uma descida das despesas públicas, o que acarretará um retrocesso do Estado social, e, em certa medida, através do aumento das receitas, sobretudo através de impostos indirectos (que são regressivos porque afectam, igualmente, ricos e pobres).

Contudo, esse caminho enfrentará riscos insuperáveis, como já advertiram, inclusivamente, prémios Nobel da economia como Krugman ou Stiglitz, dado que a despesa pública é um componente da procura com importância acrescida em momentos de crise. Se a despesa pública diminui, o consumo e o investimento também continuarão em queda, aprofundando a quebra económica. O consumo, sem a contribuição-chave do Estado, cairá, e as empresas não investirão num mercado em regressão, pelo que não haverá criação de emprego - haverá, pelo contrário, destruição de postos de trabalho. Isto, acrescentado à reforma errónea do sistema financeiro (que, ao continuar privado, não abrirá as portas às pequenas e médias empresas, que são as verdadeiras criadoras de emprego) e as reformas laborais (que precarizarão, ainda mais, o trabalho e reduzirão, em agregado, a capacidade de consumo da população), conduzirá a um desastre - nas palavras de Stiglitz.

Portanto, mesmo que a ofensiva neoliberal em curso seja bem-sucedida na redução da despesa pública, não terá a mesma sorte com a manutenção ou subida das receitas. Pelo contrário, é muito provável que as receitas continuem a diminuir e, portanto, que a relação mais relevante (receitas-despesas) continue a deteriorar-se. O que obrigará a um regresso contínuo ao mercado de dívida e ao reendividamento. 

 

Reestruturar a dívida

O não-pagamento da dívida é uma necessidade imperiosa para os países que estão presos neste círculo vicioso, ainda que, por certo, não seja a única medida imprescindível. Já existem muitos movimentos sociais partidos políticos - de esquerda - a reclamar a reestruturação ou não-pagamento da dívida. Não obstante, uma coisa é reestruturar a dívida; outra, muito diferente, é não pagar a totalidade da mesma. A reestruturação supõe a diferenciação dos vários contratos de dívida assumidos pelo Estado e modificar o seu prazo, a sua quantidade ou, inclusivamente, cancelar uma parcela ou a sua totalidade. É isto, precisamente, que está a ser reclamado pelos movimentos de esquerda.

A reestruturação dirigida pelos devedores (debtor-led default), ao contrário da reestruturação dirigida pelos credores (creditor-led default), supõe a realização de uma auditoria prévia da totalidade da dívida, controlada pelas cidadãs e cidadãos. Trata-se de determinar que parte da dívida é ilegal, imoral ou directamente insustentável. Por exemplo, pode declarar-se imoral qualquer contrato de dívida subscrito por bancos resgatados com dinheiro público ou, inclusivamente, por bancos que tenham comprado dívida pública com dinheiro obtido junto do Banco Central Europeu. Nesse caso, pode reestruturar-se o prazo, o volume ou, simplesmente, declarar que não se paga. O objectivo é reduzir a carga da dívida.

É claro que este processo tem custos políticos e económicos importantes. Os mercados financeiros (os credores: bancos e outros agentes financeiros) actuariam conjuntamente para atacar e especular contra o país em questão. Também haveria reticências radicais, a nível institucional, por parte da União Europeia e do Banco Central Europeu, além dos bancos nacionais. Por isso, seria recomendável que a reestruturação fizesse parte de um plano mais amplo e que, além disso, estivesse coordenado, pelo menos, pelos países que dele têm mais necessidade. Estes países são periféricos, como Portugal, Grécia ou Espanha. O desejável, ainda assim, seria uma auditoria a nível europeu.

O plano mais amplo deveria incluir, como têm recomendado autores como Onaran, Husson, Toussaint o Lordón, a nacionalização das entidades financeiras e a contrução europeu de um novo sistema sancionatório que puna especialmente as rendas parasitárias do capital e as grandes fortunas, além de servir para reverter a tendência para desigualdade na distribuição de receitas entre capital e trabalho. Também seriam necessárias medidas correctivas dos desequilíbrios europeus (como apontado pelo relatório da Research on Money and Finance) e da altíssima dívida privada.

(Original aqui)

4 comentários:

  1. O problema é que com a viragem à direita a que assistimos estas medidas não vão ser colocadas em prática pelo governo, e as pessoas oferecem, pela sua mentalidade, resistência a medidas consideradas "radicais", sendo que de radical têm apenas o facto de não serem defendidas pela maioria!

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  2. Eu acho que os credores devem convir que o modo de serem reembolsados dos seus créditos é o de contentarem-se com a capacidade de exportação dos endividados e permitir-lhes que levantem algumas restrições ao comércio livre de importação, possibilitando-os a substituir essa dependência por produção própria mesmo que mais cara. Por fim, também é possível que os devedores resgatem parte das suas dívidas vendendo aos credores alguns activos reais. Eu julgo que, após todos os bancos terem sido salvos da falência pelos estados nacionais, os lucros dos que conseguem recuperar devem contribuir a par dos impostos para saldar as aplicações tóxicas irremediáveis. Imprescindível, também, será mudar as regras de regulação creditícia dos bancos, e moderar com firmeza a distribuição de dividendos, injustificados!

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  3. ainda nao percebi bem como é que eu cidadã posso pedir uma auditoria?

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