domingo, 19 de fevereiro de 2012

A Grécia mostra-nos como protestar contra um sistema falhado





Não gosto de violência. Não acho que haja muito a ganhar em queimar bancos e partir montras. E no entanto, sinto um frémito de prazer quando vejo a reacção em Atenas, e noutras cidades gregas, à aceitação por parte do parlamento grego das medidas impostas pela União Europeia. Mais: se não tivesse havido uma explosão de raiva, eu teria ficado perdido num marasmo de depressão.

A alegria é a alegria de ver o tão maltratado mexilhão levantar-se e rugir. A alegria de ver aqueles cujas faces foram esbofeteadas um milhar de vezes, esbofetearem de volta. Como podemos nós pedir que as pessoas aceitem passivamente a ferocidade dos cortes do nível de vida que as medidas de austeridade encerram? Queremos que elas simplesmente aceitem que o enorme potencial criativo das novas gerações seja liminarmente eliminado, os seus talentos aprisionados numa vida de desemprego sem termo à vista? Tudo isto apenas para que os bancos possam ser ressarcidos, os ricos tornados mais ricos? Tudo isto, apenas para manter um sistema capitalista que há muito passou a sua data de validade e que agora oferece ao mundo nada mais que destruição. Para os gregos, aceitar passivamente estas medidas seria multiplicar depressão por depressão; a depressão de um sistema falhado pela depressão da perda de dignidade.

A violência da reacção na Grécia é um grito que ecoa por todo o mundo. Por quanto tempo vamos ficar parados a ver o mundo ser destroçado por estes bárbaros, os ricos, os bancos? Por quanto tempo vamos assistir impassíveis ao aumento das injustiças, ao desmantelamento dos serviços de saúde, à redução da educação para os níveis do disparate acrítico, à privatização das águas do mundo, à eliminação de comunidades e à destruição do planeta, tudo a bem dos lucros das grandes empresas mineiras?

O ataque, que é tão intenso na Grécia, está a acontecer em todo o mundo. Por todo o lado o dinheiro sujeita a vida humana e não humana à sua lógica, a lógica do lucro. Isto não é novo, mas a intensidade e alcance do ataque são novos, e nova é também a consciência generalizada de que esta dinâmica é uma dinâmica de morte, de que é provável que estejamos todos a caminhar para a aniquilação da vida humana na Terra. Quando os ilustríssimos comentadores explicam os detalhes das últimas negociações entre os governantes acerca do futuro da zona euro, esquecem-se de mencionar que o que está a ser negociado tão levianamente é o futuro da humanidade.

Nós somos todos gregos. Todos somos cobaias cuja individualidade é simplesmente arrasada pelo cilindro da história determinada pelo movimento dos mercados do dinheiro. Ou pelo menos é o que parece e o que eles desejariam. Milhares de italianos protestaram uma e outra vez contra Silvio Berlusconi mas foram os mercados do dinheiro que o derrubaram. O mesmo se passou na Grécia: manifestação após manifestação contra George Papandreou, mas no fim foram os mercados do dinheiro que o demitiram. Em ambos os casos, servos leais e comprovados do dinheiro foram nomeados para substituir os políticos derrubados, sem sequer um simulacro de consulta popular. Isto não é sequer a história a ser feita pelos ricos e poderosos, apesar de obviamente estes lucrarem com ela; é história feita por uma dinâmica que ninguém controla, uma dinâmica que, se nós deixarmos, destruirá o mundo.

As chamas de Atenas são chamas de raiva, e nós regozijamo-nos nelas. E no entanto, a raiva é perigosa. Se é personalizada ou dirigida a um determinado grupo de pessoas (os alemães, neste caso), pode tornar-se apenas destrutiva. Não é coincidência que na Grécia tenha sido o líder do partido de extrema-direita, Laos, o primeiro ministro a demitir-se após a última vaga de medidas de austeridade. A raiva pode tornar-se muito facilmente nacionalista ou fascista; uma raiva que em nada contribui para tornar o mundo melhor. É, por isso, importante ser claro e afirmar que a nossa raiva não é contra os alemães, nem sequer contra Angela Merkel ou David Cameron ou Nicolas Sarkozy. Estes políticos são apenas símbolos arrogantes e patéticos do objecto real da nossa raiva - o poder do dinheiro e a sujeição de toda a vida à lógica do lucro.

Amor e raiva, raiva e amor. O amor tem sido importante nas lutas que redefiniram o significado da política ao longo do último ano, um tema constante dos movimentos Occupy, um sentimento profundo no coração até de confrontos violentos em muitas partes do mundo. E no entanto, o amor anda de mãos dadas com a raiva, a raiva do "como se atrevem eles a despojar-nos da nossa vida, como se atrevem eles a tratar-nos como objectos". A raiva de um mundo diferente a forçar passagem através da obscenidade do mundo que nos rodeia. Talvez.

Esta obstinação na construção de um mundo diferente não é apenas uma questão de raiva, apesar da raiva ser uma das suas componentes. Isto implica necessariamente a construção paciente de uma forma diferente de fazer as coisas, a criação de formas diferentes de coesão social e de suporte mútuo. Por detrás do espectáculo dos bancos a arder na Grécia encontra-se um processo mais profundo, um movimento silencioso de pessoas que recusam pagar os bilhetes nos transportes, contas de electricidade, portagens de auto-estradas, dívidas bancárias; um movimento, nascido da necessidade e convicção, de pessoas a organizar as suas vidas de uma forma diferente, criando comunidades de suporte mútuo e redes de alimentos, ocupando edifícios e terras vazias, trabalhando hortas comunais, regressando ao campo, voltando as costas aos políticos (que agora têm medo de se mostrar nas ruas) e criando formas de democracia directa para tomar decisões colectivas. Ainda insuficientes talvez, ainda experimentais, mas cruciais.

Por detrás do espectáculo das chamas, é esta procura e criação de uma maneira diferente de viver que irá determinar o futuro da Grécia e do mundo.

Para este sábado acções em todo o mundo foram convocadas em solidariedade com a revolta na Grécia. Somos todos Gregos.

John Holloway, The Guardian, 17 Fev 2012.


Tradução de Sandra Paiva, revisão de Paulo Coimbra.

Publicado no Esquerda.NET

Artigo original aqui.

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