Fala-se muito, por estes dias, na auditoria às contas do Estado. Que uma auditoria é o primeiro passo para reformular a estrutura dos serviços públicos e sanear contas inquinadas por anos de exploração.
Até aqui, e sem considerações acerca do oportunismo de certas individualidades, agora tonitruantes adeptas da transparência, nada a dizer. Trata-se de uma medida premente. E, se fosse feita em condições apropriadas, revelaria que os cortes anti-sociais são desnecessários, selectivos e ideologicamente motivados. Não têm sustentação empírica e levarão pessoas dignas ao opóbrio, ao desemprego e à morte. Mas os austéricos da finança estão a borrifar-se para isso. Adiante.
A pergunta que faço, como cidadão, é a seguinte: quem fará essa auditoria? Serão os suspeitos do costume?
Firmas que, de acordo com Nicholas Shaxson, autor de um livro imprescindível para compreender os mecanismos invisíveis da finança global, contribuíram e contribuem para a manutenção de um sistema que promove a opacidade, práticas ilícitas (como a evasão fiscal) e ilegítimas (como a elisão fiscal), beneficiando as entidades costumeiras e transferindo custos brutais para a sociedade? Se alguém ainda se lembra, o escândalo Enron sucedeu, em grande parte, por causa da maior auditora mundial da altura, a Arthur Andersen.
Confiaremos na KPMG? Uma auditora que, de acordo com Richard Murphy (ex-contabilista na firma e actual director executivo da Tax Research Uk) e um relatório revelador, produzido pela Tax Justice Network para o Ministério Norueguês dos Negócios Estrangeiros, opera, pelo menos, em 47 (!) paraísos fiscais? Ou na Deloitte, que, de acordo com o mesmo relatório, opera em, pelo menos, 40 (!) dessas jurisdições opacas. Todas as quatro auditoras têm operações em paraísos fiscais.
De acordo com um inquérito efectuado em 2007 pela KPMG, Suíça e Chipre eram duas das três jurisdições preferidas por cerca de 400 profissionais de contabilidade em multinacionais europeias. De acordo com o projecto Secrecy Jurisdictions, o grau de opacidade da Suíça é 100/100; no Chipre, 75/100. Revelador.
As agências de notação financeira estão na berlinda - e justificadamente. Trata-se de um oligopólio cujas consequências devastadoras ainda não conseguimos determinar. Mas é preciso não desviar os olhos de outros oligopólios, também insidiosos e devastadores. Este, o das auditoras, é um deles. Com um problema adicional: qualquer auditoria tida como "credível", para as instituições componentes dos "mercados" e respectivos esbirros partidários em Portugal, terá que ser efectuada por uma das quatro grandes auditoras. Se não houver pressão cidadã, será esse o procedimento.
Num momento em que se discutem buracos nas contas e gestão danosa dos bens públicos, é preciso colocar a pergunta chata: mas quem é que andou a olhar para as contas das entidades públicas? O Tribunal de Contas? Claro. É a sua função constitucionalmente prescrita. Também é preciso reavaliar a capacidade operacional e técnica do TC: não as tem, com franqueza e não será capaz de efectuar uma auditoria rigorosa, enquanto se mantiver como está. E isso beneficia que actores/entidades/agentes? Pois. Está visto. Começamos o jogo a perder. E o Banco de Portugal, não devia ter um papel regulador mais vincado e ter as suas funções de supervisão reforçadas, com equipas destacadas em permanência nos maiores bancos? Pois claro que sim. Mas a história não acaba aí.
Eu, por mim, não tenho dúvidas de que os serviços das auditoras voltarão a ser contratados. E voltarão a repetir os chavões técnicos do costume. E continuaremos às escuras. Cobraram valores exorbitantes para fornecer serviços desadequados ao Estado. E continuarão a cobrar, mais ainda, se deixarmos.
No website transparencia-pt, leia-se, o portal da contratação pública para quem está mesmo interessado em saber o que se passa (o outro é este - http://www.base.gov.pt - e continua, anos depois, a ser uma valente trampa), percebemos o que aconteceu. As quatro grandes auditaram. E viram. E monitorizaram. E desculparam-se, concerteza, com a incúria dos decisores, que não souberam implementar as medidas adequadas ou deitaram os relatórios no lixo. Isso chega-nos como justificação?
Vejam por vocês mesm@s:
KPMG
Ernst and Young
Deloitte
PricewaterhouseCoopers
Os valores não se aproximam da realidade e servem apenas de ilustração. Cumprem o propósito de dizer o seguinte: se a sociedade civil portuguesa não se convencer de que tem um papel fiscalizador a cumprir, e isso implica ler coisas chatas, falar de coisas chatas e afrontar a malta que espera o nosso "respeitinho", não restará nada para quem vier depois de nós.
Vamos continuar a permitir o outsourcing das nossas vidas? Ou vamos, finalmente, mostrar que não estamos desatentos e a era do aldrabing sistemático acabou?
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